Sete restaurantes por quilómetro quadrado: Matosinhos é mais do que peixe grelhado
O boom da restauração de início dos anos 2000 deu boa fama a Matosinhos e fez da cidade a grande sala de jantar da região do Porto, graças ao “o melhor peixe do mundo”.
Houve um tempo em que Palmira Moreira não servia peixe no seu restaurante nas costas do Porto de Leixões: “Fazia-se chanfana de cabrito, rojões, tripas, eram os pratos que o pessoal que trabalhava na Docapesca, nas refinarias e na estiva queria.” Era o início dos anos de 1980 e havia ainda o costume, nesta casa que tinha sido taberna, de encostar uma escada ao muro que a separava do porto. Os trabalhadores subiam e iam beber e comer sem ter de dar saída da doca e assim se baptizou o sítio: Salta o Muro.
A Rua Heróis de França, onde fica o mítico restaurante de Palmira e António Moreira, ainda não tinha um grelhador de peixe em cada esquina. O marisco e os peixes nobres estavam reservados às mesas das marisqueiras de renome da cidade, onde se sentavam industriais da região. Quatro décadas depois, o desenho da cidade mudou muito por causa da explosão de restauração dedicada ao peixe e marisco desta costa. Das casas mais tradicionais às de sushi, do marisco caro ao democrático, Matosinhos “é a sala de jantar da região do Porto”.
Até António Moreira deixou de ser “mais ‘carneiro’ e passou a ser peixeiro”, diz a brincar, sobre como se tornou um apreciador do que vem do mar. Nos anos 2000, trabalhadores de computador em empresas próximas — habituais no Salta o Muro — começaram a pedir pratos de peixe a Palmira Moreira. Experimentou umas caldeiradas, arroz de polvo, mas o que queriam era o peixe grelhado, uma febre que não se tinha visto antes. Em três anos o Salta o Muro passou das panelas de carne ao peixe na chapa.
“Acho que as pessoas começaram a ver que o peixe é mais saudável”, arrisca António Moreira e completa Palmira, que tinha a responsabilidade em mãos: “Quando me pediam pratos de peixe, nem dormia. O primeiro grelhado foi um linguado. Fui com uma espátula tentar perceber se estava passado, não gosto do peixe passado de mais. Quando chego à mesa, o senhor pergunta-me se posso espinhar o peixe. ‘Posso.’ Nunca tinha espinhado um peixe, mas fui pela minha intuição e saí-me bem. No final disse-me: ‘A partir de hoje, Palmira, compre o peixe que quiser’.”
A peixeira Normandia, que continua a ligar-lhe às cinco da manhã quando tem “uma coisinha especial”, foi-lhe dando a confiança — “como fazes carne, vai fazer peixe”, dizia-lhe — e Palmira perdeu o medo de grelhar os melhores robalos, rodovalhos, carapaus, aprendeu sozinha a escalá-los e, no Inverno, passou a fazer travessas de peixe frito com o que há no dia. Nem sempre são os nomes sonantes, mas também são aqui bem tratados: a raia, os verdinhos (que até parecem pescadinhas de rabo na boca) ou as marmotinhas.
Sete restaurantes por quilómetro quadrado
Entretanto, a concorrência na Rua Heróis de França cresceu, tornou-se o passeio do peixe grelhado. Estão aqui O Valentim, amado pelas lulas e outros grelhados, o Meia-Nau ou o 5 Oceanos, de decoração cuidada, ou o tradicional Tito (já com duas moradas na mesma rua). A lista continua a crescer e, diz Isabel Vasconcelos, que trabalha por aqui desde os anos 1970, “onde antes havia tantas tasquinhas, hoje há restaurantes finos”.
Nos anos de 1940 e 1950 apareceram algumas tabernas para vender vinho e petiscos aos trabalhadores do porto e aos residentes das casas operárias. Nos setentas, no interior da cidade apareceram as primeiras marisqueiras de luxo, mas na taberna dos pais de Isabel e Norberto Vasconcelos também se comia algum marisco. Há 49 anos, começaram a vender camarão, navalheiras, mexilhões e santiaguinhos a preços acessíveis a pescadores e operários que lhes chamavam Marisqueira dos Pobres.
O nome mantém-se — “nunca mais passa à dos ricos”, ri-se Norberto. “Muito cliente ensinei a comer marisco aqui, havia gente que nunca tinha provado percebes”, recorda. Os irmãos querem “manter a essência” do sítio, apesar de serem hoje um restaurante que serve todo o tipo de marisco — incluindo as lagostas ou santolas que não são para um bolso pobre —, caldeiradas, arroz de tamboril. A comida também se faz de modas, acredita Isabel, e a Marisqueira dos Pobres vai acompanhando. A do momento, diz, é a do peixe grelhado, que também fazem, porque “em Matosinhos tem de ser”. Na sua época, as sardinhas “que antigamente iam para o latão”, recorda, são um ícone da cidade: “Cozinhavam-se no forno em camadas de sal e era tanta a fartura que se salgavam para o Inverno.”
A escassez da sardinha é já glosada, mas vale a pena falar da do marisco e de quem o apanhe nesta costa. Há menos aventureiros a apanhá-lo (aqueles que antes o vendiam directamente aos restaurantes) e a procura aumentou. Os números deixam clara uma explosão de restaurantes no concelho nos últimos anos: há 450 estabelecimentos de restauração em 62 quilómetros quadrados, revela Mariana Teixeira Moreira, da Câmara Municipal de Matosinhos (CMM), acrescentando que é “um dos maiores clusters do sector na Europa”. Segundo números do município, em 2021 havia mais de 4500 pessoas empregadas no sector de alojamento e restauração e em 2022 o volume de negócio da restauração e similares esteve perto dos 260 milhões de euros.
Cidade das marisqueiras
“Matosinhos assume-se como a sala de jantar da Área Metropolitana do Porto”, acrescenta a adjunta da vereação com pelouro do turismo na CMM, frisando que vão surgindo cada vez mais restaurantes com cozinha de outras paragens. O peixe e o marisco continuam, no entanto, a ser o ex-líbris e levaram até à criação da marca Matosinhos World’s Best Fish pela CMM. Este é o destino de quem vive ou trabalha na região do Porto quando o assunto é comer peixe ou marisco — Miguel Faria, da Marisqueira de Matosinhos, uma das mais antigas da cidade, sabe-o de experiência.
“Falar de Matosinhos é falar de restauração, não sei de nenhuma terra que tenha tantas marisqueiras. A maioria dos meus clientes são de cidades vizinhas, de 60 quilómetros de distância, por exemplo — são industriais, pessoas ligadas ao futebol, ou até espanhóis, que estão aqui a 100 quilómetros”, descreve Miguel Faria, que assistiu à transformação da cidade. Chegou com 12 anos para trabalhar no Convés, um dos poucos do final dos anos de 1960.
“A Rua Heróis de França não era nada do que é hoje, nem Matosinhos — não havia estes prédios, havia indústria. Há 20 anos muita gente começou a abrir restaurantes, mas o pai das marisqueiras em Matosinhos é o senhor Henrique Torres, que abriu as primeiras, a Esplanada, a Proa e a Convés”, recorda Miguel, que se tornou sócio de Torres em 1978, quando abriram a Marisqueira de Matosinhos, de que é dono, juntamente com a mulher, desde 1993.
Se a Esplanada (também conhecida como Antiga) ou a Majára, fundada em 1970, são uma espécie de pioneiros resistentes, casas como a Marisqueira de Matosinhos e o Gaveto (aberto em 1984) pertencem a uma honrosa segunda geração, com o seu balcão de snack-bar e aquários de marisco vivo. Dos primeiros anos, Miguel Faria recorda ainda a amêijoa que vinha do Algarve de comboio, uma excepção. O resto era local, como hoje, dentro da oferta sazonal: a santola chega no final do Inverno, com a Primavera aparece o lavagante azul, e o camarão da costa, embora não seja farto como já foi, vem pelo Verão.
Nas marisqueiras de Matosinhos juntam-se a estes bichinhos os peixes nobres. “Nós privilegiamos os peixes de mar desta lota, têm uma grande qualidade. Servimos o cherne, o robalo com um arroz de amêijoas. Às vezes, há um ou outro cliente habitual que nos pede umas petingas ou uns carapauzinhos fritos, mas não é a nossa linha de serviço”, conta Miguel Faria.
Do luxo ao charme de uma aldeia piscatória
Na Marisqueira de Matosinhos o serviço continua distinto, ao jeito das casas fundadas há mais de 50 anos. É uma restauração para um segmento alto que tem o seu expoente máximo a alguns quilómetros, na Casa de Chá da Boa Nova, com duas estrelas Michelin desde 2019. Aqui faz-se uma cozinha criativa chefiada por Rui Paula e tudo se dedica ao mar. Num edifício desenhado por Álvaro Siza Vieira, em cima das pedras da praia de Leça da Palmeira, só se serve peixe e marisco com influências das memórias do chef, mas também dos temperos de outros pontos do mundo, numa evocação da ida época da expansão portuguesa.
Se Leça da Palmeira é morada desta arquitectura e cozinha contemporânea, seguindo para Norte encontram-se pequenos armazéns de pescadores junto ao areal e grelhas acesas às 11 da manhã. Em Angeiras, os restaurantes contavam-se pelos dedos de uma mão há 20 anos, lembra Manuela Sousa, que nasceu e cresceu aqui. O peixe grelhado tornou-se, no início do milénio, um imperativo para quem queria dar um passeio junto à praia e, como o negócio estava nessa oportunidade, uma bomba de gasolina transformou-se no restaurante Maioral e a Casa do Gordo deixou de vender mercearias para vender refeições. Actualmente há cerca de 30 restaurantes em Angeiras.
Em 2015, sem emprego na área de gestão de marketing, Manuela Sousa olhou em redor e decidiu criar “um conceito urbano numa aldeia piscatória”: o Casa da Guripa. Com o marido, comprou uma casa em ruínas, preservou algumas paredes em granito e criou um restaurante de comida de partilha feita de peixe e marisco. A inspiração inicial foram os restaurantes de tapas espanhóis — uns cornetos de sapateira, umas tirinhas de choco frito, que não deixam a carta —, mas agora o Casa da Guripa prefere assumir sabores tradicionais, como o arroz de marisco, ou uma cavala escalada, com apresentação cuidada. A estrela é o polvo da costa, carnudo, de textura firme e muito saboroso, assado no ponto.
“Vejo Angeiras como uma zona alternativa a Matosinhos, se calhar menos massificada”, diz Manuela sobre a quantidade de restaurantes no centro da cidade. “Aqui ainda se vêem os pescadores a trabalhar nas redes ao sábado de manhã, ainda se ouve o calão local”, descreve. Usava-se “argaço” para falar do sargaço, apanhado para adubar os campos do interior, e “guripa” para o sinal sonoro que guiava os pescadores em noites de nevoeiro. Ficava próximo deste edifício que, desconfia Manuela Sousa, terá sido em tempos um lugar para tratamentos com águas ricas em iodo, junto a umas casinhas para férias balneares.
Sabores japoneses, frescura rigorosa
Para os clientes do peixe dá uma certa confiança estar perto do mar. É um conforto mental que resulta mesmo num empreendimento habitacional, no sul do concelho. Numa loja pequena com um balcão e meia dúzia de mesas, Masaki e Akiko Onishi ultimam as preparações desde as oito da manhã: faltam o arroz para o sushi e cortar alguns peixes frescos para os almoços do Rino. São japoneses e chegaram a Portugal há cerca de 20 anos como cozinheiros do embaixador do Japão. Deixaram de ser funcionários diplomáticos, mas mantiveram o rigor na cozinha — primeiro no Ichiban, conceituado japonês na Foz do Porto; agora, num restaurante próprio com um ano.
“Não queríamos estar no centro, não queríamos ter turistas que vêm uma vez e não voltam mais. É mais engraçado conhecer as pessoas”, diz Masaki enquanto mistura o arroz cozido com vinagre. Akiko, ao telefone, vai desiludindo algumas pessoas do outro lado: estão fechados ao domingo, segunda e quinta — são os dias necessários para que, numa equipa de dois, esteja sempre a ser servido o peixe mais fresco. “Tenho um comprador na lota que compra assim que o peixe chega e arranjo-o logo. O que estraga o peixe é a barriga, que começa a contaminar com sangue o filete”, explica Masaki.
Continua a receber alguns peixes de outras paragens — as barrigas de atum gordas são imperativas nesta cozinha —, mas os carapaus, rodovalhos, pargos e douradas de Matosinhos têm sabor e qualidade. Insiste Masaki: falta aos portugueses saber arranjá-los assim que saem do mar para prolongar a sua frescura. “A parte preta do olho tem de estar grande, se estiver reduzida e mais clara já não é do dia. A barbatana tem de estar aberta e se estiver vermelha quer dizer que já há sangue no filete”, explica os seus requisitos e confessa que lhe faz falta a variedade dos mares do Japão.
Depois de bem limpos, sem vísceras nem cabeça, Masaki e Akiko enrolam os lombos em película e deixam-nos no frio até ser hora de servir ou marinar. Tanto os peixes azuis, como o carapau, ou os brancos, como a dourada ou robalo, são servidos em sashimi, ou seja, lâminas finas de peixe cru, clássicas do sushi. No entanto, no Rino também se serve cozinha japonesa quente: rodovalhos grelhados depois de marinados em miso, ou carapaus marinados em soja, sake e mirin, e que servem de decoração quando ficam a secar, pendurados pelo rabo, sobre o balcão.
O Rino é um exemplo de como a terra que conhece bem o peixe ainda pode redescobri-lo. No entanto, as abordagens novas e criativas não vêm apenas de restaurantes orientais ou de estrelas Michelin. De volta ao Salta o Muro, junto ao porto, Palmira Moreira gosta de saber o que se faz fora do seu restaurante, espreitar o que fazem nos outros, na televisão, inspirar-se. “No tempo da covid fiquei com o frigorífico cheio de peixe e comecei a inventar, saiu-me um robalo de coentrada.” Recorda o passo a passo: filetar o peixe, temperá-lo com sal, fazer um caldo aromático para o cozer brevemente e, no final, um punhado de coentros. Uma espécie de caldeirada branca que, assim que foi parar às redes sociais, ganhou fãs. São inovações com sabor a clássico.