Debora Diniz: “O aborto é uma dívida democrática às mulheres”

Uma mulher que atravessa a fronteira para fazer um aborto, uma lei que transforma “médicos em polícias”: são os temas de Mulher Comum, o filme de Debora Diniz, investigadora exilada do Brasil.

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Fotograma do filme Mulher Comum DR
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A história de Scarleth Dantas é a de muitas outras mulheres. É brasileira, jovem, negra e viu-se obrigada a sair do Brasil para poder fazer um aborto seguro e legal. Percorreu mais de dois mil quilómetros para o fazer em Buenos Aires, na Argentina — país que descriminalizou o aborto há quatro anos, depois de uma mobilização histórica das mulheres argentinas.

A viagem de Scarleth, 29 anos, é retratada no filme Mulher Comum, o sexto documentário de Debora Diniz, realizadora, investigadora e professora da Universidade de Brasília. Há mais de 20 anos que é conhecida pela sua intervenção pública na discussão da interrupção voluntária da gravidez (IVG).

Em 2018, foi forçada a deixar o Brasil, depois de receber ameaças e intimidações por defender a legalização do aborto. Neste país, o aborto continua a ser crime, punível até três anos de prisão. Há excepções: quando a gravidez resulta de uma violação e quando há risco de vida para a mulher. Desde 2012 que também é permitido em casos de feto anencéfalo, uma malformação cerebral grave. Debora Diniz foi uma das protagonistas da acção judicial que levou o Supremo Tribunal Federal a tomar esta decisão.

Nesta sexta-feira, vai apresentar o seu filme Mulher Comum no Porto Femme, o festival de cinema do Porto dedicado às mulheres. Ao P3, explica como a criminalização do aborto transforma “médicos em polícias” e como a punição não chega às “mulheres ricas”. Partilha a importância de reescrever a história para quem ainda está por vir e como tem sido difícil viver longe da terra onde queria estar.

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A investigadora Debora Diniz DR

Na apresentação que faz do filme, diz que a sua arte é a da escuta. Porque é que é importante escutar a vida desta mulher, a Scarleth?
No mesmo português que a gente fala existe uma diferença entre ouvir e escutar. No japonês, a diferença é muito clara. O verbo é o mesmo (foneticamente, ouve-se "kiku"), só que quando a gente vai escrever é diferente. “Ouvir” (聞) tem dois caracteres que significam “portões”. Você só precisa ter dois ouvidos. Escutar (聴) tem mais caracteres: tem os dois portões, o número dez e o coração. Ou seja, você precisa de dez vezes mais emoções para escutar alguém do que só ouvir. O tema do aborto pede que a gente escute, não só que ouça.

A criminalização do aborto é um tema de fanatismo. Não é uma questão religiosa, é de um nicho da extrema-direita. Uma das características do fanático é ser alguém sem imaginação, já dizia Amos Oz [escritor israelita]. As pessoas vivem num tal estado de “desimaginação” sobre quem é a mulher, a menina, a pessoa que faz aborto… que não conseguem imaginar ou perceber que quem faz o aborto é precisamente a mulher comum, como Scarleth.

Este filme que realizou chama-se precisamente Mulher Comum…
Quando a gente escuta Scarleth, percebemos que ela é a mulher que vai à igreja. É uma mulher de família, já tem três filhos. É dona de casa. Ela é a mulher comum brasileira e ela é exactamente a mulher “desimaginada” pelo fanatismo do aborto.

Esse filme, para mim, é um experimento de perceber se a história de Scarleth é suficiente para provocar a aproximação, a imaginação, a escuta. Posso estar errada. Pode ser que o fanatismo seja tão brutal que resiste, mas acho que a gente não pode abandonar essa disputa pela imaginação.

Também dá uma cara, uma voz, aos números que tem vindo a investigar [Debora é uma das autoras de três Pesquisas Nacionais sobre o Aborto no Brasil, publicadas em 2010, 2016 e 2021]. Quem são, então, as mulheres que fazem um aborto no Brasil?
O que a ciência vai dizer é o que a gente vê no filme. As Pesquisas Nacionais do Aborto dizem que uma em cada sete mulheres aos 40 anos já fez um aborto. A cada minuto, uma mulher faz um aborto no Brasil. As chances são mais altas se for uma mulher negra, como Scarleth se identifica. Se for uma mulher que já tenha filhos, como Scarleth. Se for uma mulher de classe trabalhadora, de classe média ou pobre, como Scarleth.

A criminalização não impede o aborto. Que perigos enfrentam as mulheres no Brasil?
A pergunta é mais: se Scarleth é uma mulher tão comum, porque é que não foi para o método comum da mulher brasileira? Porque é que não foi comprar os remédios na feira? Porque é que não foi numa clínica clandestina? A cada cinco dias morre uma mulher a fazer um aborto clandestino no Brasil. Uma história não contada no filme é que Scarleth tem uma prima que morre por aborto clandestino. Então, essa era uma história da família.

Sabemos que o aborto é crime no Brasil. Mas, de facto, as mulheres podem ser presas?
No Brasil, o aborto é crime pelo Código Penal de 1940, ainda de muita influência portuguesa. Há mulheres que são processadas, mas não chegam a ser presas porque a criminalização é suficiente para intimidá-las e fazer com que elas recorram a métodos clandestinos e ilegais. Dizer que elas não são presas não significa que ela é uma lei criminal sem eficácia, porque a eficácia está nas barreiras, no estigma, na clandestinidade.

Coordeno uma clínica jurídica na Universidade de Brasília e trabalhámos com uma mulher na sua defesa. Essa mulher chegou [ao hospital] com um aborto espontâneo no segundo trimestre. Ela foi algemada na maca sob suspeita de aborto. Vivem a punição, mesmo que depois acabem por não ser presas...

Em 2020, foi noticiado o caso de uma menina brasileira de 11 anos que estava grávida, vítima de uma violação. Segundo a lei, poderia abortar, mas enfrentou vários entraves [foi pressionada por uma juíza para não interromper a gestação e os médicos negaram fazer o aborto a esta criança]. Mesmo nos casos em que é legal abortar, quais são as dificuldades que as pessoas enfrentam?
Todas. Porque a criminalização cria um estado permanente de suspeição. Confunde os médicos, que acham que são policiais. Ficam buscando uma verdade do estupro, quando o dever deles era apenas cuidar. No caso dessa menina, os médicos criaram barreiras pedindo autorização judicial onde não era preciso. Criaram barreiras sobre o tempo gestacional da menina. Ou seja, a criminalização cria um estado de incerteza em que as pessoas se acham representantes da lei punitiva.

A Debora alerta, em várias entrevistas, para que a lei punitiva do aborto não afecta as mulheres “de elite”, que encontram alternativas para fazer um aborto de forma segura. Falar de aborto é também falar de pobreza?
Há uma frase, inclusive dos movimentos feministas, que diz que a criminalização do aborto é a criminalização da mulher pobre, negra, migrante. Não há implicação da criminalização do aborto para as mulheres das elites, para as mulheres brancas, ricas. Elas não fazem abortos clandestinos, não precisam ir para a Argentina. Conseguem os medicamentos correctos, conseguem pagar às clínicas que fazem os procedimentos de forma segura no Brasil.

Num dos filmes que eu fiz, chamado Eu Vou Contar, uma mulher da elite disse que, quando quis abortar, foi no médico de família e ele respondeu: “'Tá, tudo bem, a gente vai resolver.” E aí indicou uma clínica segura onde se resolvia.

Porque é o que aborto continua a ser um tema de confronto na sociedade?
Os movimentos de extrema-direita se movem por narrativas de ódio. O aborto é um tema de intenso contágio porque há uma ideia de uma vítima que precisa ser protegida, que não é a mulher, menina, pessoa que engravida. É um tema com forte potencial de contágio odioso, de contágio do fanatismo.

A força da extrema-direita tem a questão de género no centro. Porquê? Controlar o ciclo de vida das mulheres, controlar a sua reprodução, é controlar a reprodução social da vida. Quando nós controlamos as mulheres (decidindo com quem, quando e como elas vão ter filhos), nós estamos controlando o futuro.

O aborto é uma dívida democrática às mulheres. Essa é uma expressão das argentinas. A descriminalização do aborto é sobre a experiência de cidadania das mulheres. É sobre decidir quando, com quem, como elas vão ter filhos. Então, se a descriminalização toca em questões como género ou cidadania, isso é sobre democracia.

Tem existido um aproveitamento político em relação ao aborto?
Sem dúvida, é por isso que eu disse, no início, que ele é um nicho da extrema-direita. Não é por convicção, não é por pensar nas mulheres… Não, é um nicho que descobriu que é um tema com poder de contágio.

O seu filme Mulher Comum mostra-nos uma nova realidade. Em 2020, a IVG foi descriminalizada na Argentina e desde então muitas mulheres brasileiras atravessam a fronteira para fazer um aborto legal. O que se sabe sobre esta realidade?
Isso acontece em todos os países fronteiriços. Portugal já viveu isso [quando o aborto era ilegal em Portugal, muitas mulheres viajavam até Espanha para fazer um aborto seguro], mas no Brasil é um fenómeno novo. Eu colecto histórias de mulheres que foram à Argentina fazer um aborto. Já ouvi 28 mulheres para tentar entender como é que elas fazem. Onde buscam informação? Como é que elas chegam? Vão sozinhas? É isso que eu estou tentando entender. A Scarleth é um fragmento desse colectar de histórias. Ela só conseguiu ir à Argentina com o apoio de um projecto chamado Vivas, uma associação que ajuda mulheres a fazer um aborto seguro.

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Fotograma do filme Mulher Comum DR

Viajar até à Argentina é uma alternativa acessível para as mulheres?
Eu diria que é menos uma questão de classe e mais uma questão do medo que a mulher tem da lei. As mulheres não querem viver a experiência de serem tratadas como criminosas. Elas acabam revirando possibilidades e recursos: algumas chegam pelo projecto Vivas, pedem empréstimos, buscam carona, vão de ónibus. Esse é o perfil das mulheres que viajam até à Argentina.

Em 2020, quando o aborto se tornou legal na Argentina, tinha esperança de que o Brasil fosse contaminado pela “onda verde”?
Sem dúvida. Esperança não é um afecto tolo, não é optimismo. A esperança é a análise de probabilidades baseada no presente. Nenhuma região do mundo está mudando tão rápido a legislação do aborto como a América Latina. Era a região que mais criminalizava, mas olha agora a Argentina, México, Colômbia, Uruguai…

Acha possível acontecer uma mobilização no Brasil como aconteceu na Argentina?
Há uma tradição na Argentina de ocupar as ruas. Mesmo durante a ditadura, as mulheres estavam ali ocupando as ruas, na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, em busca de informações sobre os seus filhos, desaparecidos durante a ditadura militar. Estas mulheres usavam um lenço branco, que serviu de inspiração para as jovens argentinas que, nos últimos anos, ocuparam as ruas em defesa do aborto seguro, usando lenços verdes. Essa é a história da Argentina. Nós não temos a tradição de ocupar as ruas. As ruas no Brasil não são seguras para as mulheres. Mas a mobilização pode vir de outra maneira.

Hoje, o Brasil tem talvez um dos feminismos mais diversos do mundo. A discussão racial hoje atravessa qualquer discussão sobre reparação histórica e sobre democracia. A juventude brasileira, a juventude das mulheres, especialmente das mulheres negras, faz uma interpelação histórica ao país. Então, a minha esperança está nesse próprio tensionamento da sociedade brasileira desde as suas raízes, tocando a questão colonial, racial, a questão de género. Hoje, as redes sociais no Brasil são fundamentais para mover eleições, construir alianças, inclusive para novas gerações feministas.

Quando saiu do Brasil, também se reinventou nas redes sociais…
A minha vida geográfica é fora do Brasil, mas a minha vida política, a minha vida de interacções, é no Brasil. Então, quando saí, me fiz alguém digital. Eu sou activa nas redes sociais. Passei a dar aulas online. Reinventei-me. Encontrei um mundo que eu não queria perder.

Em 2018, viu-se obrigada a deixar o Brasil. Nesse ano, participou na apresentação de uma acção judicial, junto do Supremo Tribunal Federal, para a legalização da IVG até às 12 semanas a pedido da mulher, acabando por receber ameaças de morte e intimidações. Quando é que percebeu que não havia alternativa?
Eu fui professora a minha vida toda. Tinha uma rotina, tinha alunos. Recebia ameaças de morte. Mas quando as ameaças passaram a ser contra a universidade, passaram a ser ameaças de massacre… um dos poderes desse ódio é tornar a “vítima radioactiva". As pessoas perguntavam a toda a hora: Está tudo bem? É seguro você entrar na sala de aula?

Esse é um poder: disseminar o medo. E o medo pode ser paralisante, porque é a imposição do castigo antes mesmo da execução da maldade. Então, eu passei a ter segurança do Estado, estou sob protecção do sistema nacional de Defensores de Direitos Humanos em risco de vida. Foi assim que saí [do Brasil]. Mas eu tinha de continuar vivendo a vida e fazendo mais ainda o que eu sei fazer.

Hoje, como olha para esta acção judicial? Tem esperança de que exista uma decisão do Supremo em breve?
Essa acção ainda está pendente. Eu não volto ao Brasil enquanto a acção não for decidida, seja para ganhar ou para perder. Porque o objecto do ódio não sou eu, é o tema. Ele move-se e vai ter no centro do redemoinho algumas pessoas, mas daí a pouco surge outra questão, outro tema.

Mas acho que nós temos um papel. Quando a gente propõe uma lei, mesmo quando perdemos, a gente está oferecendo arquivo para quem vem depois contar a história. A gente mostra que em algum momento da história, alguém queria que as coisas fossem diferentes.

Em Portugal, a IVG é legal desde 2007. Mas, por exemplo, este ano, durante a campanha eleitoral, um candidato da Aliança Democrática defendeu a realização de um novo referendo. O aborto não é um direito garantido?
Nunca. Porque os direitos das mulheres nunca são garantidos enquanto existir o patriarcado. Esse lugar tranquilidade não vai existir.

A descriminalização fez diminuir o número de IVG em Portugal. As suas investigações revelam também que a taxa de aborto é menor entre mulheres escolarizadas, por exemplo. Podemos interpretar isto como um sinal de que a informação reduz a taxa de aborto?
A Organização Mundial de Saúde tem uma rota crítica do aborto: quando a mulher faz um aborto é porque precisa de informação, ajuda, cuidado. Ou sofreu violência, ou usou mal o método contraceptivo. Alguma coisa está acontecendo. Se você perde a oportunidade de informá-la, não se previne o segundo aborto. Uma em cada três mulheres no Brasil faz aborto de repetição.

Além disso, essa mulher, ao não ter informação, também não é uma fonte para outras mulheres. Então, os países que descriminalizaram o aborto reduziram a taxa de aborto porque as pessoas tiveram acesso a educação sexual, a métodos contraceptivos correctos. A criminalização do aborto faz o contrário. Cria barreiras que contaminam as prioridades do Estado. Se é crime, esta deixa de ser uma questão de saúde reprodutiva, de direitos reprodutivos.

Este ano, a França foi o primeiro país do mundo a colocar o direito ao aborto na Constituição. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos da América, o estado do Arizona recuperou uma lei de 1864 para proibir o aborto em quase todas as circunstâncias. Como encara estas mudanças de posição?
É muito interessante porque há duas forças que estão em tensão. Tem o estado do Arizona, com esse delírio de retorno ao século XIX. Mas tem também as mudanças que querem fazer na Polónia, com quatro projectos de lei para acabar com as restrições ao aborto vão ser debatidos por uma comissão parlamentar especial da Polónia, o país que têm as leis mais restritivas da Europa. A Alemanha hoje também tem uma conversa sobre tornar a legislação mais permissiva [actualmente, o aborto ainda é ilegal neste país]...

Na sexta-feira, o seu filme vai ser exibido no Porto Femme. Quais são as expectativas?
É uma alegria tão grande. Tenho um apreço por Portugal. Passei o Natal e o Ano Novo no Porto… é um lugar onde tenho memórias afectivas e este é um festival que me traz calor por ser de mulheres, sobre mulheres, numa linha de lutas de mulheres. É quase como se alguém dissesse p'ra mim "eu entendi seu filme". É maravilhoso.

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