As conversas em família de Passos Coelho
Este discurso sobre modelos únicos de família e sobre a atribuição de papéis sociais com base no género é a prova cabal de que a escola tem o direito, e mesmo o dever, de educar para estes temas.
O final de tarde da passada segunda-feira, 8 de abril, parece ter sido estudado ao pormenor: os autores – no masculino, que de 22 apenas cinco eram mulheres e nenhuma com “direito” a honras de apresentação da obra –, o momento da sessão de lançamento, o autor da apresentação e até os convidados especiais. A sessão seria para apresentar a obra Identidade e Família, mas o cerimonial à sua volta deixou pouca margem para dúvidas: a direita, outrora somente conservadora, hoje marcadamente radical, reunia-se para apresentar, afinal, a sua visão e projeto para a sociedade portuguesa. Nessa sessão, Passos Coelho enalteceria como principais méritos desta obra (1) a ideia de que o princípio da igualdade coloca em causa e ameaça o (seu) conceito de “família natural ou tradicional” e (2) a denúncia a uma instrumentalização do ensino “pela esquerda”, para fazer avançar a sua agenda política, levando à “sovietização da educação”. Da plateia, era aplaudido e incentivado por André Ventura, enquanto, à noite, Paulo Otero e Ribeiro e Castro se apressavam a amplificar a sua mensagem nas televisões.
A poucos dias do 25 de Abril, é fundamental dissecar esta mensagem. Sobre o primeiro ponto, cuja tónica é a igualdade – e nunca devia ser excessivo enfatizá-lo –, não há absolutamente nenhum dado que prove que há, hoje, menos relacionamentos heterossexuais do que no passado; ou que o reconhecimento de direitos relacionados com a orientação sexual ou a identidade de género influencie de qualquer modo os relacionamentos heterossexuais ou a sua mais que evidente prevalência na sociedade; ou até que as tarefas desempenhadas socialmente por homens e mulheres não derivam apenas e só de uma construção social, totalmente variável e dependente do respetivo contexto social e temporal. A igualdade (e a liberdade) daqueles autores, maioritariamente homens, ou de todos os que por eles se sentem representados, não se encontra, por isso, ameaçada.
O segundo ponto é, na verdade, aquele que mais interesse me despertou. E é, precisamente, o ponto em que Passos Coelho tornou absolutamente evidente que as questões de "Identidade" e de "Família" devem ser – ao contrário do que defendem os autores – colocadas no centro dos currículos escolares e constituir uma parte fundamental da nossa educação para a cidadania ativa.
De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2022, o crime de violência doméstica teve um aumento de 15% naquele ano e “é aquele que observa o maior número de registos entre toda a criminalidade participada”. A maior parte dos casos de violência e abusos sexuais de menores acontece, precisa e infelizmente, no contexto doméstico e na família. E são vários os relatórios ou estudos que apontam a rejeição familiar como um dos mais prevalentes indicadores de casos de doenças mentais e suicídio de pessoas LGBTI. Estes dados tornam claro que a família pode ser também um espaço de insegurança e confronto. Acresce a isto que, ao contrário do que a apresentada obra defende, as questões relacionadas com a identidade não são uma escolha: da mesma forma que não escolhemos o tempo e o espaço em que nascemos, também não escolhemos as nossas características genéticas, nem tampouco a nossa orientação sexual, a identidade de género ou o nosso sexo.
Este discurso sobre modelos únicos de família e sobre a atribuição de papéis sociais com base no género é a prova cabal de que a escola tem o direito, e mesmo o dever, de educar para estes temas. É que na eventualidade de a família ser local de confronto, conflito e até rejeição, a Escola – extensão de todos nós enquanto comunidade – pode mesmo ser uma “família tradicional”: espaço de segurança, aceitação e amor. Isto não é “sovietização do ensino”, mas a garantia de que a escola é um espaço onde todas as pessoas se sentem seguras para serem o que são, para se aceitarem como são e para, até, descobrirem quem são. Isto tem de ser parte integrante do nosso conceito de cidadania, porque a cidadania de pleno direito só pode ser exercida no respeito integral do princípio de igualdade perante a lei e no respeito dos direitos individuais de cada pessoa.
Identidade e família é afinal menos uma obra e mais uma declaração de intenções: é a tentativa de importar para a sociedade portuguesa uma agenda conservadora, extremista, que fermentou do outro lado do Atlântico, se espalhou um pouco por toda a Europa e que agora procura ancorar no nosso país. Por força de uma eventual ambição política pessoal, cai a máscara a Passos Coelho – e aos 22 outros mais ou menos conhecidos autores. Mas nos 50 anos do 25 de Abril, cá estaremos para deixar claro que não há nada menos tradicional e identitário, para a sociedade portuguesa, do que o discurso de ódio, de desigualdade e de opressão.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico