Decisões
Imaginou outros cenários possíveis, a gravidez, o amor materno, a estranheza de criar dentro de si um outro ser — e depois cuidar dele, educá-lo, vê-lo crescer, assistir ao inferno da adolescência.
Mas nessa noite, em que me levaste para casa do Eduardo, fizemos sexo?, perguntou a Ana, fizemos, disse o Flávio, sem preservativo?, perguntou ela, sem, disse ele, comigo completamente bêbeda?, perguntou ela, sim, admitiu ele. A Ana saiu agoniada de casa do Flávio, com ele e não por estar grávida, ou por ambas as coisas. Pensou imediatamente em fazer um aborto, dos que havia à época, com agulhas de tricô e materiais e condições afins, mas também imaginou outros cenários possíveis, a gravidez, o amor materno, a estranheza de criar dentro de si um outro ser — e depois cuidar dele, educá-lo, vê-lo crescer, assistir ao inferno da adolescência —, mas não, pensou ela, não vou comprometer o meu futuro, não posso destruir a minha vida sacrificando-a por outra em potência, a minha foi construída durante anos, com alegrias, lágrimas, amizades, a de um feto ainda não é nada, ou é muito pouco, de que nos adianta viver se não for para cumprir os nossos sonhos, não somos simplesmente parideiras, aliás, não será melhor, se optar pela maternidade, fazê-lo com quem amo, num ambiente saudável, em vez duma relação maculada pela concepção em escadas de prédio e sem estar lúcida?, não seria melhor ter condições para concretizar os meus sonhos para depois poder concretizar os dos outros?, e no entanto algo antigo me diz que não, que deveria parir, há uma pressão atávica que não deixa decidir sem culpa, apesar de nestes assuntos a moral ser ela própria inconstante, não há uma opinião universalmente aceite, muitos indígenas, por exemplo, matam filhos à nascença porque, sendo nómadas, há um limite para o número de crianças que podem ser carregadas numa comunidade deste tipo. Estão a defender a vida, pois ela não seria possível sem esse aborto às quarenta semanas, nem a da mãe nem a dos seus outros filhos nem, como consequência, a do grupo. Sei que não vivemos numa sociedade deste tipo, mas a escolha, mesmo quando se aborta, é sempre uma decisão pela vida. Podemos ser absolutamente a favor da vida sem ter em conta a das mães? A vida não se resume a nascer ou dar à luz, é muito mais do que isso. Não sou dona do meu corpo, não posso abortar, mas devia e, se devia, é o que farei.
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