Trolls russos tentam condicionar apoio norte-americano à Ucrânia, mostram documentos do Kremlin
Documentos a que o Washington Post teve acesso mostram que a campanha de desinformação pretende acicatar tensões raciais e económicas nos Estados Unidos e criar receio sobre a segurança fronteiriça.
Quando o Presidente norte-americano, Joe Biden, propôs 24 mil milhões de euros adicionais para financiar a Ucrânia, em Agosto, spin doctors [profissionais de comunicação que moldam uma determinada narrativa para surtir um efeito desejado] de Moscovo, ao serviço do Governo russo, prontamente tentaram comprometer o apoio público da população norte-americana, mostram documentos internos do Kremlin.
Como parte de uma campanha que procura influenciar o debate político e do Congresso no sentido de alimentar o sentimento anti-Ucrânia, vários estrategos políticos e trolls (criadores de contas falsas nas redes sociais) ligados ao Kremlin têm escrito milhares da segurança fronteiriça dos Estados Unidos, tentando ainda amplificar as tensões raciais e económicas no país, de acordo com umade notícias falsas, publicações e comentários nas redes sociais que promovem o isolamento norte-americano e criam medo em torno colecção de documentos internos do Kremlin obtidos por um serviço secreto europeu e lidos pelo The Washington Post.
Um dos estrategos políticos, por exemplo, deu instruções a um funcionário de uma “fábrica de trolls” para que escrevesse um comentário com “menos de 200 caracteres em nome de um residente dos subúrbios de uma cidade grande”. O estratego sugeriu que este norte-americano fictício “não apoiasse a ajuda militar que os EUA estão a dar à Ucrânia e opinasse que o dinheiro deveria ser gasto a defender as fronteiras norte-americanas e não as ucranianas”.
Os documentos, que serão mais de cem, datados de entre Maio de 2022 e Agosto de 2023, foram dados ao The Post para expor operações de propaganda do Kremlin cujo objectivo seria enfraquecer o apoio à Ucrânia nos Estados Unidos, a sua escala e os métodos. Os ficheiros fazem parte de uma série de fugas de informação que permitiram um raro vislumbre dos esforços paralelos de Moscovo para enfraquecer o apoio à Ucrânia em França e na Alemanha, assim como desestabilizar o país.
“Parar o fornecimentos de armas”
A Rússia tem reforçado as operações de propaganda como parte de uma segunda frente que, segundo diplomatas ocidentais, se tem tornado quase tão importante para Moscovo como a campanha militar na Ucrânia – especialmente numa altura em que o apoio do Congresso para conseguir mais ajuda se tem tornado fulcral para a capacidade de defesa da Ucrânia.
“A prioridade maior da Rússia é parar o [fornecimento] de armas. Então, estão a atirar coisas à parede e ver o que cola”, disse um colaborador republicano na Colina do Capitólio [sede do governo]. “Estamos a assistir a uma campanha alargada que tem várias linhas de esforço, com umas a trabalhar melhor do que outras. Os russos não querem saber. Eles estão só a tentar cultivar o ambiente.” O colaborador e outros responsáveis ocidentais falaram sob anonimato por abordarem assuntos sensíveis.
A campanha tem tentado mostrar o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, como corrupto, enfatizar o número de migrantes que atravessam a fronteira entre México e EUA, pedir que a segurança das fronteiras seja financiada, em vez de ser dada ajuda à Ucrânia, e tem descrito os “norte-americanos brancos” como os que mais perdem devido à ajuda externa, indicam os documentos.
A estratégia promove pontos de vista da ala da direita radical do Partido Republicano e pede que a mensagem seja divulgada por “líderes de opinião e políticos” norte-americanos, diz um dos documentos, mas não nomeia quem pode ser escolhido para o fazer.
Muitos dos documentos contêm metadados que revelam que foram escritos por membros de uma equipa que trabalhava ao serviço de Ilya Gambashidze, chefe da Social Design Agency, empresa de relações públicas de Moscovo. Os Estados Unidos impuseram sanções a Gambashidze no mês passado devido ao seu envolvimento numa “persistente campanha de influência estrangeira perniciosa” sob direcção do Kremlin, incluindo a criação de vários sites desenhados para imitar meios de comunicação autênticos na Europa, como parte de uma campanha a que responsáveis ocidentais chamaram “Doppelgänger” [“duplo”, em alemão].
Nem Gambashidze nem o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov responderam a um pedido de esclarecimento.
A campanha faz parte de uma estratégia cada vez mais sofisticada elaborada ao longo de quase dez anos de esforços do Kremlin para dar voz aos políticos anti-sistema populistas que se opõem ao papel global dos Estados Unidos, atestam vários analistas e antigos responsáveis norte-americanos.
Com a ala de direita radical do Partido Republicano a bloquear o envio de mais ajuda para a Ucrânia desde Agosto, os esforços do Kremlin para condicionar o apoio ao país poderão ter ganhado bastante mais tracção nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar até agora.
Propaganda repetida por republicanos
“O impacto do programa russo na última década (...) fica patente no debate do Congresso norte-americano sobre ajuda à Ucrânia”, disse Clint Watts, chefe do Centro de Análise de Ameaças da Microsoft. “Eles têm tido impacto de forma estratégica e coerente. “Nunca teriam ouvido antes (...) políticos nos EUA a dizer que a Ucrânia não é suficientemente significativa e que não vamos apoiar a NATO. Numa plataforma digital, a capacidade de fazer estas coisas funciona.”
O republicano Michael R. Turner (representante de Ohio no Congresso), presidente do restrito comité permanente dos serviços secretos da Câmara dos Representantes, disse no domingo passado que era “absolutamente verdade” que alguns membros republicanos do Congresso estavam a repetir propaganda russa sobre a invasão da Ucrânia. “Assistimos a tentativas que vêm directamente da Rússia para mascarar comunicações que são mensagens anti-Ucrânia e pró-Rússia – algumas das quais chegamos a ouvi-las na Câmara dos Representantes”, disse Turner no programa Estado da União da CNN.
Watts afirmou que a Rússia “diz ao público 80% do que eles já estão a ouvir e 20% do que querem que ele ouça. Dão resposta à necessidade de informação e acrescentam alguma da sua própria informação e, ao longo do tempo, isso é altamente eficaz”.
Os esforços do Kremlin para interferir no sistema político norte-americano tornaram-se evidentes pela primeira vez no periodo pré-eleitoral de 2016, quando os serviços secretos dos EUA concluíram que a Rússia tinha usado uma rede de trolls para difundir desinformação que potenciasse a campanha presidencial de Donald Trump e sabotar a candidatura de Hillary Clinton, incluindo histórias que utilizavam material “hackeado” da campanha de Clinton. Desde então, algumas redes sociais têm procurado apertar o escrutínio de agentes estatais hostis, mas as campanhas de desinformação prosseguem.
A equipa de Gambashidze refere a utilização de contas nas redes sociais de “curta duração”, com objectivo de evitar que sejam detectadas. Manipuladores das redes sociais estabeleceram uma técnica que envolve utilizar contas para enviar links para certos materiais e posteriormente eliminar as suas publicações ou contas depois de outros terem partilhado os conteúdos. A ideia é encobrir a verdadeira origem da informação enganosa e manter o canal aberto para futuras operações de influência, dizem investigadores em desinformação.
Operacionais de propaganda têm usado outra técnica para difundir apenas o endereço web em vez de palavras num post, para frustrar a procura desse material, de acordo com a empresa de investigação em redes sociais Alethea, que chama à táctica “escrever com tinta invisível”. Outros truques de encobrimento da origem das mensagens incluem redireccionar os utilizadores para uma série de sites aparentemente aleatórios até que cheguem ao artigo falso.
Um dos documentos analisados pelo The Post apela ao uso da rede social Truth Social, de Donald Trump, como única forma de disseminar publicações “sem censura”, sendo, ao mesmo tempo, criadas contas de “curta duração” no Facebook, Twitter (agora X) e YouTube.
“Isto é o que está realmente a acontecer, isto é o que os meios de comunicação oficiais não vos estão a contar”
Em Janeiro de 2023, o Kremlin empenhou-se seriamente em condicionar o apoio norte-americano à Ucrânia. Sergei Kiriyenko, o primeiro vice-chefe de gabinete do Kremlin, chamou a equipa de estrategos políticos que já estava a trabalhar em campanhas para enfraquecer o apoio a Kiev na Europa, incluindo Gambashidze, e pediu-lhes que expandissem os seus esforços, segundo os documentos analisados. A equipa de estrategos emprega dezenas de funcionários e tradutores da fábrica de trolls.
Os spin doctors de Moscovo receberam rapidamente ordens para criar conteúdos media para norte-americanos, que promovessem as alegações de corrupção envolvendo a governação ucraniana – “a venda e o roubo de armas” dadas à Ucrânia, de acordo com um documento.
Os estrategos foram instruídos para cultivar um ambiente em que “os americanos não estão dispostos a sacrificar o seu bem-estar em prol do conflito na Ucrânia” e a representar a relação cada vez mais estreita da Rússia com a China como uma nova ameaça “criada pelas actividades dos próprios EUA”.
Quando o deputado Matt Gaetz (republicano da Florida), um dos principais opositores à ajuda à Ucrânia, alertou para “um perigoso consenso bipartidário que está a levar [os EUA] para a guerra com a Rússia” e criticou o pacote inicial de ajuda de 40 mil milhões de dólares de Washington a Kiev em 2022, que seria concedido, “enquanto os americanos ficam sem leite para bebé”, os russos destacaram-no para os seus trolls como um exemplo de mensagem que deveria ser amplificada.
“É importante notar que, para um trabalho eficaz, é necessário reduzir ao mínimo as falsificações e potenciar ao máximo as informações realistas”, afirma uma das propostas da equipa de estrategos de Gambashidze. “Um refrão constante deve ser: ‘Isto é o que está realmente a acontecer, isto é o que os meios de comunicação oficiais não vos estão a contar.’”
O porta-voz de Gaetz, Joel Valdez, respondeu aos estrategos do Kremlin que invocaram as declarações do congressista, referindo que Gaetz tinha sido pessoalmente sancionado pela Rússia em Abril de 2022. Centenas de membros da câmara foram sancionados nessa altura.
Foram criados posts e comentários nas redes sociais, bem como vídeos no YouTube, para alimentar a discórdia racial e social nos Estados Unidos e amplificar narrativas sobre “pobreza universal, inflação recorde, interrupção do crescimento económico (...), risco de perda de emprego para os norte-americanos brancos, privilégios para as pessoas racializadas, degeneradas e para os inválidos”. Os metadados mostram que a mensagem foi escrita por um membro da equipa de Gambashidze.
Os posts promoviam o receio de que os gastos excessivos em política externa fossem feitos “em detrimento da defesa dos interesses dos brancos nos EUA” e a ideia de que “a América vai perder, apesar dos esforços de Biden, que [vão] ser arrastados para a guerra e que os [seus] homens vão morrer na Ucrânia”.
Os estrategos escreveram inúmeras recomendações para artigos ou publicações nas redes sociais, segundo os documentos analisados. Um deles procurava comparar o nível de pessoas em situação de sem abrigo na América com o das mesmas pessoas na Rússia e afirma que os Estados Unidos estão a começar a assemelhar-se cada vez mais a um “país do Terceiro Mundo”. Um comentário recomendado nas redes sociais de um americano fictício em resposta ao artigo afirma: “Sinto-me enraivecido quando mais um pacote de ajuda à Ucrânia é distribuído diante dos meus olhos para os bolsos de responsáveis norte-americanos e ucranianos. De facto, é difícil compreender tais gestos de ‘ajuda’, quando os próprios sem-abrigo se sentam aos pés dos transeuntes [e] dormem debaixo das pontes.”
Enquanto a Administração Biden se preparava mais uma vez, esta Primavera, para tentar fazer aprovar no Congresso um financiamento suplementar para a Ucrânia, os sites identificados pela Microsoft e outros investigadores de redes sociais da campanha do Kremlin lançaram novas tentativas de espalhar conteúdos enganadores sobre a imigração e a fronteira com o México. Num caso, um site identificado pela Meta como fazendo parte da rede Doppelgänger publicou um artigo sobre aquilo a que chamou “uma vaga de imigração ilegal” que, segundo a mensagem difundida, estava a “prejudicar os alicerces da segurança nacional”.
Os conteúdos propostos pelos estrategos reflectem temas e narrativas visíveis na rede Recent Reliable News e noutros órgãos relacionados – sites que permanecem online e que os documentos mostram ser controlados por responsáveis do Kremlin que trabalham com Gambashidze e outros estrategos. Os textos publicados eram diferentes, de acordo com o Centro de Análise de Ameaças da Microsoft, que analisou uma amostra dos comentários e artigos criados pela equipa russa. A Microsoft e a empresa de informação sobre os meios de comunicação social Graphika afirmaram ser possível que os artigos propostos tenham sido publicados em sites Doppelgänger, posteriormente retirados e bloqueados pelas redes sociais. A Meta, a empresa-mãe do Facebook, juntou-se a empresas de investigação das redes sociais para expor pela primeira vez a campanha Doppelgänger em Setembro de 2022.
Enquanto trabalhavam, os spin doctors do Kremlin monitorizavam de perto as sondagens de opinião nos Estados Unidos e a queda do apoio dos norte-americanos, especialmente dos republicanos, à Ucrânia. Também realizaram sondagens bimensais com um mecanismo a que chamaram “amostragem fluvial” – a realização de sondagens na Internet através de publicidade online e de redes sociais como o Facebook e o TikTok.
As notícias falsas que referem a corrupção de Volodymyr Zelensky [Presidente ucraniano], divulgados por sites ligados à Rússia durante os debates no Congresso sobre o apoio à Ucrânia, no Outono, tiveram eco. Uma das alegações mais bem-sucedidas foi difundida pelo DC Weekly – um meio de comunicação na Internet de aparência respeitável, que os investigadores de desinformação da Universidade de Clemson rastrearam até chegar a domínios digitais associados a um antigo agente da polícia americana, John Mark Dougan, que trabalha como jornalista pró-russo na região oriental de Donbass na Ucrânia.
Através do DC Weekly, uma notícia falsa alegando que Zelensky tinha comprado dois iates com dinheiro da ajuda americana tornou-se viral em Novembro. A afirmação – manifestamente falsa e desmentida pelo Governo de Zelensky – foi apanhada pela congressista de direita radical Marjorie Taylor Greene (republicana da Georgia), que a ligou a uma história sobre o rumor no X.
Um senador pró-Ucrânia, o republicano da Carolina do Norte Thom Tillis, disse à CNN que o debate sobre a ajuda tinha sido interrompido, em parte, porque alguns políticos se disseram preocupados com as denúncias de corrupção e com a ideia de que “as pessoas vão comprar iates com o dinheiro [da ajuda à Ucrânia]”.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post