Na Ferreira fuma-se sável há décadas. Haverá mais firmas a fazer o mesmo?

Sim, a Poças também o faz, mas seria interessante se outras empresas de vinho do Porto levassem esta actividade um bocadinho mais a sério. Ficava toda a gente a ganhar

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O sável à tanoeiro é fumado durante cerca de 18 horas sobre serrim de aduelas de velhos cascos de vinho do Porto. Sergio Ferreira
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A primeira vez em que ouvimos falar em sável fumado foi na Poças, a mais antiga empresa de vinho do Porto de famílias portuguesas e que nunca mudou de mãos. Há dois anos, André Barbosa, que é o enólogo da casa e o especialista na fumagem do peixe, referiu-nos que, tanto quanto sabia, era na Ferreira que ainda havia a tradição de tratar o peixe migrador desta forma. E não se falou mais nisso.

Por estes dias, à conversa com Rute Monteiro, responsável de comunicação da Sogrape, ficámos a saber que, sim, senhor, esta tradição tem décadas na Ferreira, que vai passando de geração em geração de tanoeiros e que, pasme-se!, os fornecedores de sável fumado para o finório Clube Portuense são os responsáveis pela saúde das pipas e dos tonéis de todas as empresas de vinho do Porto do universo Sogrape.

Durante décadas, quem tratou do assunto foi José Lourenço, mais conhecido entre amigos como o filho do Trinta Diabos, visto que, segundo consta, o pai era uma peça levada da breca. Lourenço aprendeu a fumar o sável com o “senhor Rodrigues, ainda no tempo do Salazar”. Quando se reformou, há três anos, Lourenço passou a arte a Fábio Vieira (36 anos), também conhecido como o quatro e meia, porque, dantes, era o tempo que demorava entre a sua casa e o emprego. Ainda dizem que é só no Alentejo que se capricha nas alcunhas.

Vejamos então o que é isso do sável à tanoeiro. É apenas peixe (Alosa alosa) que é fumado a partir do fumo de serrim de aduelas de velhos cascos que guardaram vinho do Porto toda a vida. Na base de uma pipa (ou barrica, visto que parecem levar menos de 550 litros) coloca-se o serrim. Três ou quatro palmos acima coloca-se o peixe, que vai estar aqui durante cerca de 18 horas (consoante a dimensão dos espécimes). No caso da Poças, André Pimentel faz uma salmoura prévia com sal, açúcar, cascas de limão, funcho e pimenta-preta. Após separar a coluna espinhosa (o pente), os filetes ficam na salmoura, no frio, durante 48 horas. Depois, passam-se por água e vão a fumar na vertical durante uma noite. No caso da Ferreira, é tudo mais simples. “Só tiramos as tripas do peixe, salgamos e metemos logo a fumar, inteiro e na horizontal”, diz José Lourenço, que, por época, já chegou a fumar 50 sáveis.

E o processo corre sempre bem? “Depende de alguns factores, mas com a prática a gente aprende a adaptar o fumo em função do peso do peixe. Se já correu mal? Pois, uma vez eu quis despachar serviço e meti peixe a mais na barrica. Resultado: o lume abafou e o peixe não fumou como devia. Tem de haver equilíbrio entre a quantidade de serrim a fumar e o número de peixes nas barricas.”

Manda a tradição que se coma o sável à tanoeiro com batatas cozidas, brócolos e molho de manteiga, receita que, está-se mesmo a ver, deve ter mão inglesa pelo meio.

Sável fumado em barricas de vinho do Porto, na Ferreira Sérgio Ferreira
José Lourenço, já reformado, passou a Fábio Vieira a arte de fumar sável em barricas de vinho do Porto. Sérgio Ferreira
Sável fumado em barricas de vinho do Porto, na Ferreira Sérgio Ferreira
Sável fumado em barricas de vinho do Porto, na Ferreira Sérgio Ferreira
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Sável fumado em barricas de vinho do Porto, na Ferreira Sérgio Ferreira

E se fumarmos outras espécies?

Não se sabe ao certo por que razão começou esta tradição da fumagem do sável por parte dos tanoeiros de Gaia, mas acredita-se que terão sido os marinheiros dos barcos rabelos a desenvolver a técnica. Como a viagem no rio, antes das barragens, demorava três dias para cima e dois para baixo, os tripulantes entretinham-se a pescar e a fumar peixe.

Ainda ligamos ao historiador Joel Cleto, que sabe muito sobre muitas coisas do Porto e arredores, mas, com a honestidade que o caracteriza, assumiu nunca ter ouvido falar de semelhante coisa. Todavia, revelou interesse em estudar o assunto, a começar pela parte sensorial propriamente dita. Pareceu-nos um bom princípio científico, pelo que o processo está em curso.

De uma forma ou de outra, o certo é que várias firmas de Gaia fumavam o peixe migrador que tem o seu encanto: nasce nos rios da Europa e, quando atinge, os 10 centímetros, faz-se à vida no mar. A partir do terceiro ano pode regressar ao mesmo rio onde nasceu para fazer posturas (centenas de milhares de ovos) e morrer. O apetite humano e as barragens nos rios fizeram que, hoje, a espécie esteja num estado vulnerável.

Noutros tempos, quando havia pescadores em abundância no Douro, os peixes eram capturados depois de terem desovado. Donde, magros. Hoje, Fábio Vieira reconhece que quando compra sável capturado no mar o sabor é mais rico. Não admira. Estão gordos antes da desova.

Curiosos, os dois tanoeiros não se limitam ao sável para fumagem. “Já fiz com truta e com carapau e tenho que dizer que ficam muito saborosos porque são peixes gordos, só temos de adaptar o tempo de fumo”, remata o filho do Trinta Diabos. Qualquer dia ainda teremos sarda fumada na Ferreira. Isso é que era. Peixe barato, saboroso e em bom estado de conservação.

Em dois anos, esta é a segunda empresa que descobrimos a fazer sável à tanoeiro. Haverá outras a fazer o mesmo? Ou melhor, não seria interessante criar-se, a partir desta tradição, um evento sobre sável nas unidades de enoturismo do universo do vinho do Porto em Gaia? Algo que, tradição à parte, permitisse a criatividade de chefes da região, explorando especiarias e ervas aromáticas. Não seria interessante abrir esta experiência à sociedade em geral? É que, ainda por cima, dá-se o caso de o peixe fumado ligar bem com alguns vinhos do Porto brancos, que bem merecem todas as oportunidades, coitados. Fica a sugestão.

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