Uma tour feminista pelo Porto porque “ocupar o espaço público não é tão fácil quanto isso”

Isabeli Santiago e Alicia Medeiros lideram visitas guiadas pelas memórias de mulheres artistas, escritoras e activistas do Porto. Pelo caminho, deixam lembretes para a cidade não as esquecer.

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Isabeli Santiago, co-fundadora do Colectivo MAAD, destaca a figura de Ana Plácido no monumento dedicado a Camilo Castelo Branco. NELSON GARRIDO Nelson Garrido
neg -  23 março 2024 - Tour feminista pelo Porto
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O projecto começou em 2019, na quarta edição do Festival Feminista do Porto Nelson Garrido
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A bandeira branca do colectivo MAAD (Mulheres, Arte, Arquitectura e Design) marca o ponto de encontro: 20 minutos antes das 9h30 já se retiram de uma grande sacola os materiais de apoio das guias e os zines e folhetos para distribuir pelo grupo que se vai juntando no Largo do Amor de Perdição, no Porto.

Nos bancos ao lado da escultura do escritor Camilo Castelo Branco, 25 pessoas (e um pequeno cão) aguardam o início da Tour Feminista do Porto, uma caminhada de três horas que percorre cinco pontos da cidade, descobrindo pelo caminho a memória de mulheres artistas, escritoras e activistas que revolucionaram a história do Porto, mesmo que a cidade não o mostre ou que quem lá vive não as conheça.

O projecto foi concebido em 2016 por Isabeli Santiago, assistente de curadoria na Galeria Municipal do Porto, e Alicia Medeiros, arquitecta e investigadora independente. Santiago tinha desenvolvido, durante a licenciatura, roteiros que partiam da memória de mulheres e de arquivos históricos locais e Medeiros, na altura a fazer um mestrado na Faculdade de Belas-Artes do Porto (FBAUP), trabalhava numa investigação sobre o acto de caminhar como expressão artística. O envolvimento das duas em colectivos feministas impulsionaram a primeira visita guiada, em 2019, durante o Festival Feminista do Porto.

Agora enquanto colectivo MAAD, a ideia expandiu-se e conta com a colaboração de Chloé Darmon, arquitecta e criadora do projecto de mapeamento Habitar a Água, que documenta as práticas urbanas das mulheres a partir do estudo dos lavadouros públicos no Porto.

“Numa escala ideal, gostaríamos que esta experiência performativo-activisto-artística servisse para ampliar consciências em aspectos formais e activos da vida política – como a luta por políticas públicas de equidade, representatividade e não-discriminação; e em esferas simbólicas também, como na transmissão dessas histórias entre gerações e a sua conservação num arquivo mental colectivo”, explica Santiago, que começa por apontar para a estátua Amores de Camilo.

Aqui a narrativa não se foca em Camilo Castelo Branco, mas na mulher desnuda a ele abraçada, figura feminina que é muitas vezes associada à escritora e sua amante, Ana Plácido.

Santiago destaca a vida e as obras da escritora, assinalando a forma como foi vítima de “apagamento histórico devido à sua relação com Camilo”, considerada apenas como sua musa na cultura popular. Escritora e tradutora “alinhada com os pensamentos feministas da época”, o colectivo assinala que Ana Plácido (1831-1895) foi reduzida a uma placa numa “rua sem saída nos subúrbios”, representada em escultura de maneira “nua, grotesca e colossal” e associada constantemente a Castelo Branco de maneira prioritária, tanto na página da Wikipédia como nos motores de busca online.

Para Medeiros, a mulher no espaço público é recorrentemente associada a algum elemento alegórico, como o comércio, a agricultura e, neste caso, de acordo com o próprio autor da escultura, “a mulher na obra do Camilo”. No livro Toponímia Feminina Portuense, citado durante a visita, César Santos Silva identifica 146 entradas toponímicas “femininas” na cidade do Porto (3,54% do total). Grande parte desta lista é composta por figuras religiosas e, devido ao binarismo de género na língua portuguesa, por nomes ou adjectivos que não correspondem a pessoas reais.

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Busto de Virgínia de Moura, uma das principais vozes da luta antifascista em Portugal durante a ditadura salazarista, à frente do actual Museu Militar do Porto, antiga prisão da PIDE. Nelson Garrido

Estes números podem acabar por ser enganosos, salvaguardam as co-fundadoras do MAAD. Medeiros e Santiago comentam, em ensaio para a revista digital brasileira Performatus, que quem caminha pela cidade à procura destes topónimos depara-se com um “clássico cenário de apagamento e silenciamento histórico”. A lista é composta, de forma minoritária (1,51%), por figuras históricas como a engenheira Virgínia de Moura ou a escritora e crítica literária Carolina Michaelis (ambas pontos de visita recorrentes do Tour Feminista do Porto). De resto, identificam-se corpos anónimos, sem identidade, “alegorias de feições idealizadas e corpos extremamente erotizados”.

A intervenção no espaço público

No rés-do-chão da casa de Carolina Michaelis (1851-1925), no número 159 da Rua de Cedofeita, Isabeli Santiago cola um pequeno cartaz em homenagem à escritora: “Nesta casa viveu a maravilhosa Carolina Michaëlis, tradutora, lexicógrafa e insigne romanista. Celebramos a sua vida, o seu legado e todas as palavras que aprendemos através dela”, lê-se.

Para as organizadoras da Tour Feminista do Porto, a intervenção pública é um apontamento de "reparação histórica". Desde os autocolantes até aos cartazes, afirmam que a intervenção de cariz efémero pode compreender uma ligação pessoal à história do monumento, do indivíduo e da cidade. Muitas vezes, no entanto, “a vigilância oficial ou privada nestes espaços, ou até mesmo das pessoas que passam por perto da tour” impede-as de deixar uma marca. “Ocupar o espaço público não é tão fácil quanto isso...”, diz a guia em tom optimista, entre o riso dos participantes.

No Cemitério do Prado do Repouso, onde alguns entram só para passear, a visita pára no monumento mandado erigir por Henriqueta Emília de Conceição em 1868. A memória de Henriqueta está envolvida em vários mistérios, referida em arquivos locais como uma figura “esquisita no seu viver”, protagonista de vários mitos urbanos e histórias de veracidade duvidosa. Mas é um facto que este monumento foi erguido em homenagem à sua parceira romântica, Teresa Maria de Jesus, que morreu de uma infecção respiratória e ali está sepultada. No entanto, esta informação é omitida na placa que a sinaliza.

Santiago narra um conhecido episódio “entre o facto e a fábula” em que Henriqueta, no momento do sepultamento de Teresa, corta e rouba a cabeça da sua amada. Acabou por ser julgada e depois ilibada pelo juiz, que encarou o roubo feito por Henriqueta Emília da Conceição não como profanação, mas como um acto de amor extremo.

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Na base do monumento "Amores de Camilo" é desenrolado um grande manuscrito com o nome de todas as obras e colaborações literárias de Ana Plácido. Nelson Garrido?

Lêem-se documentos de arquivo onde Conceição é protagonista, destacando a sua fama na Cidade Invicta e os relatos que foram deixados pela memória colectiva. Deixam-se flores e velas em honra da “esquisita” figura e da sua amada e cola-se um novo autocolante na placa, para completar a história: “Monumento dedicado à memória de Teresa Maria de Jesus e Henriqueta de Conceição. Amor é amor. Visibilidade importa”, escreveram, no papel transparente.

O roteiro termina sempre no edifício abandonado Pão de Açúcar, na Avenida de Fernão de Magalhães. É mantida alguma distância do empreendimento, que se encontra protegido por grandes muros e correntes. Aqui, o colectivo relembra a história de Gisberta Salce, imigrante brasileira “trans”, vítima de um dos maiores casos de transfobia do país.

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O edifício Pão de Açúcar, local onde foi assassinada Gisberta Salce há 18 anos atrás. Nelson Garrido

A distância mantida deste edifício abandonado não é ao acaso. O colectivo teve dificuldades, ao longo dos anos, ao tentar intervir no espaço, dada a repercussão nacional do crime. Anteriormente, falavam da memória de Gisberta à frente de um dos portões de acesso ao edifício, colocavam autocolantes, escreviam mensagens no chão com giz, instalavam faixas directamente no local e reproduziam a Balada de Gisberta, canção escrita por Pedro Abrunhosa e interpretada por Maria Bethânia.

“De facto, algumas vezes nos últimos anos fomos agredidas verbalmente, sofremos assédio e violência, que é também uma grande problemática no contexto da prática activista – o que não nos impede de repetir a experiência, mas leva-nos a reformulá-la de forma segura e estratégica”, explica Santiago. Nas mais recentes visitas, que se deverão repetir a 13 e 20 de Abril, nada foi escrito e nenhuma canção foi reproduzida. Isabeli Santiago desenrola apenas um grande cartaz à frente dos participantes: “Porto, não esqueceremos o que fizeram com Gisberta. A culpa não foi da água”.

Texto editado por Renata Monteiro

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