Seis meses de holocausto e o mundo (ainda) não travou Israel. Mas Gaza já mudou o mundo
Ao destruir Gaza, Israel destrói-se por dentro, e para fora. Os palestinianos não vão desaparecer. E o que sabemos sobre os humanos é já outra coisa.
1. Começo este texto no momento em que o meu amigo W. está a tentar chegar a Rafah. No primeiro texto que publiquei há seis meses, ele estava a deixar a sua casa da Cidade de Gaza, deslocado à força, como centenas de milhares. Hoje sabemos que deixou essa casa para sempre. Todas as casas da família dele foram bombardeadas. E desde então perdi a conta às vezes em que W. foi deslocado, sobrevivendo ao Inverno e à fome, cada vez mais doente. Tem sequelas de ter sido torturado pelo Hamas. Anos antes fora tradutor de reportagens que fiz. Conhecemos diferentes fases do Hamas. Ele, na carne, a mais recente. Nenhuma ilusão. E, tal como o mundo inteiro, ambos ficámos de boca aberta na manhã daquele sábado, 7 de Outubro de 2023, quando o Hamas invadiu Israel por terra e ar, infligindo-lhe o maior golpe de sempre. Boca aberta pela escala e características do ataque, e pelo que parecia um impensável falhanço da segurança israelita. Hoje sabemos que Israel teve informação. Jovens soldadas de vigilância junto a Gaza fizeram alertas e queixam-se de serem ignoradas pelos chefes. Machismo, narcisismo, falta de noção, tudo isso ou não apenas?
Havia mil perguntas a 7 de Outubro. E continuamos longe de reconstituir o que se passou. Em parte porque desde aquele dia nunca mais jornalistas entraram em Gaza (a não ser sob escolta, mediante censura). Estes seis meses são também os da primeira grande não-cobertura de uma guerra: diante dos nossos olhos, mas não escrutinada, enquanto bravos jornalistas locais pagam com a vida, de forma inédita. Há seis meses que vemos o inédito, e continuamos sem ver o fundo.
O plano de W. era hoje de madrugada deixar o seu abrigo em Nusseirat, a meio da Faixa, e descer até Rafah com algum veículo que passasse, a motor ou animal. Levaria horas, arriscar-se-ia a bombas, mas ele quer lutar pela vida, e aquela é a única saída. A fronteira onde se concentra uma variada sordidez humana. A israelita. A egípcia. A árabe. A americana. A europeia. Todos os que contribuíram para a fotografia, seis meses e 75 anos depois: um monte de crianças esfomeadas a estenderem-nos uma panela vazia.
Esse é o nosso retrato.
2. Vi, no Egipto, em 2011, um milhão na Praça Tahrir contra Mubarak. O ditador caiu. E a revolução também, pouco depois. O Egipto continua uma ditadura, reprimindo islamistas em casa, travando os que estão em Gaza. Faz o jogo de Israel desde 7 de Outubro, e reprime protestos contra isso. Um milhão de egípcios não foram para Rafah. Entretanto uma empresa chamada Hala está a facturar no Cairo. Tira palestinianos de Gaza por 5000 euros. Por cabeça. Não é um segredo, anuncia no Facebook, já saíram reportagens. Familiares no estrangeiro, desesperados, montam crowdfundings. E mais manifestantes presos no Egipto nos últimos dias.
Tal como manifestações pró-Palestina foram dispersas à força na Jordânia.
3. Ao mesmo tempo, a Alemanha congelava contas de activistas judaicos pró-Palestina. A Alemanha, ajudada por Ursula Von der Leyen, encabeçou o pior da Europa desde 7 de Outubro. O holocausto da Palestina no altar da culpa alemã. Das várias culpas europeias em cascata a partir daí. Milhões de pessoas sacrificadas sem que ninguém faça frente a Israel, porque os nazis exterminaram seis milhões de judeus. A culpa não é transformação, é mesmo a ausência de transformação, um álibi para não mudar. A culpa alemã é uma forma extrema de narcisismo. Perguntas cada vez mais difíceis: quanto é que a Alemanha não mudou desde os nazis? Quanto é que a Europa não mudou?
O que a maior parte dos governantes nos mostraram depois de 7 de Outubro é que a culpa era mais importante do que a vida dos palestinianos. Tal como a Europa anti-semita antes se livrara dos judeus — desresponsabilizando-se depois dos palestinianos etnicamente limpos para que Israel fosse criado. E hoje é mais importante a vida dos ucranianos, e a segurança da Ucrânia, face à ameaça que Putin representa.
4. As verdades não se anulam umas às outras. É verdade que Putin deu cabo de toda uma Rússia, e é uma ameaça para a Ucrânia e para toda a Europa. Não é possível sobrestimar o seu perigo. E é verdade que o mundo tem dualidade de critérios em relação à Palestina. Fazer frente a Putin não tira fazer frente a Israel. Israel não é um Estado menos sinistro por Putin ser sinistro. Ou o regime do Irão ser sinistro. No momento em que escrevo, Israel está em alerta sem saber quando o Irão lhe cai na cabeça. Inocentes vão sofrer a retaliação, que vai vir, certamente. Porque o Governo de Israel resolveu nada menos do que bombardear um edifício da Embaixada do Irão na Síria, matando um general e mais figurões iranianos. Como se não tivesse mais de 100 reféns para tirar de Gaza, e dezenas de milhares de israelitas laicos a incendiar as ruas pelo retorno dos reféns e contra o Governo, e milhares de israelitas religiosos a serem arrastados por pernas e braços porque não aceitam ir para a tropa. Ou seja, o Governo de Israel atacou o Irão como se não tivesse a sua própria casa a arder. Ou, justamente, porque está a arder em casa.
Além, claro, de estar a levar a cabo em Gaza aquilo que cada vez mais peritos pelo mundo consideram ser um genocídio. É a palavra usada por Francesca Albanese, relatora especial da ONU para Israel/Palestina. Enquanto centenas de juristas no Reino Unido pressionam o Governo para não colaborar num provável genocídio. Ou o Parlamento do Canadá veta, enfim, mais armas para Israel. Para citar exemplos de aliados de Israel.
O Conselho de Segurança da ONU demorou quase seis meses, mas finalmente aprovou um cessar-fogo. Além de tudo o mais, Israel é neste momento o país que está a desrespeitar essa resolução. Tal como todos os dias tem desrespeitado o que o Tribunal Internacional de Justiça decretara, para prevenir um genocídio. Um país a um passo do ostracismo mundial, alertou há dias o ex-Presidente israelita Rivlin.
Mas, nestes mesmos dias, além de atacar o Irão, Israel ainda teve tempo de inventar uma lei para banir a Al Jazeera. O Parlamento aprovou. O Parlamento. Porque o problema não é só Bibi, nem os seus aliados colonos, supremacistas judaicos, que além de quererem colonizar Gaza se apoderaram como nunca de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia, onde milhões de palestinianos estão também reféns. Há cem reféns do Hamas a sofrer horrores. E milhões de reféns de Israel. Uma verdade não tira a outra.
E não tira que acredito em todo o relato da ex-refém Amit Soussana, de como foi vítima de abuso sexual pelo homem que a guardou em Gaza. Tudo o que conta fez sentido, e bate certo com o que conheço. E com as consequências mentais de um cerco como o de Gaza. E com as consequências da repressão sexual em geral, de instituições, movimentos ou Estados teocráticos.
Aliás, se Israel está a arder, é também porque uma parte de Israel já é uma teocracia. Os partidos religiosos foram um cimento do sistema, em troco de os haredim não servirem no Exército, e serem subsidiados. E agora que o estado está a gastar milhões com a guerra, mais a ocupação da Cisjordânia, e soldados estão a morrer em Gaza, Israel precisa de mais dinheiro, e mais soldados. Se as ruas estão cheias de protestos, não é pelos palestinianos, nem sequer contra a guerra. É importante que se perceba — como explicou no jornal Haaretz Amira Hass, a única repórter israelita a viver entre palestinianos — que, ao fim de seis meses, a maioria dos israelitas ainda sustenta a guerra. Em silêncio ou activamente. E isso também é um sintoma do problema mais fundo de Israel, que o 7 de Outubro expôs. Idem os “erros graves” que Israel reconheceu ao matar sete trabalhadores da World Central Kitchen, bombardeando um carro após outro. Não são só erros graves, mostram a degradação das Forças Armadas israelitas, como em Gaza “cada um faz o que quer”, segundo fontes do Exército também disseram ao Haaretz.
Não falei dos EUA e não tenho espaço para muito mais. O discurso de Biden depois do 7 de Outubro revelou de forma cristalina como as vidas palestinianas não contavam para ele como as israelitas. Na última New Yorker há uma entrevista de Isaac Chotiner que volta a mostrar isso. É a New Yorker: insuspeita de ser anti-semita. Tal como a recente, e histórica, capa da London Review of Books (21/3).
Sim, os EUA estão exasperados com “Bibi”, preferem Gantz, talvez queiram forçar a queda do Governo israelita, já pregam ralhetes e Blinken tem aquela cara de mártir que nem dorme. Ainda assim, acabam de mandar mais milhões de armas para Israel. Falta muito.
5. Seis meses depois, porém, é claro que o ataque do Hamas quebrou o statu quo de forma irreversível. Os palestinianos vivem um sacrifício sem precedentes, mas não vão desaparecer. Novas gerações viram um holocausto em directo. A visão de Israel no mundo é outra. A ruína moral rói os israelitas por dentro. E rói-nos. O que sabíamos sobre os humanos mudou. Sabemos mais, e será mais difícil. Muito difícil. Mas saber é a única forma de mudar.
Alexandra Lucas Coelho é escritora e jornalista