Masha

Por vezes basta um ruído para nos salvar de um pensamento. Ou a vida. Um samovar que cai inexplicavelmente.

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Sempre vestida de preto, num luto que nunca alivia, Masha à varanda diante da vista que melhor conhece: virada para dentro de si.

Aprendeu a lidar com a rejeição sem saber o que era ser gostada, sabe mais da tristeza do que da alegria que encontra nos outros através de filmes e telenovelas. Apaixonou-se uma vez. Um amor não correspondido, que a fez sentir-se preterida e feia, uma condenação para a vida. A sua vocação é ser espectadora de si própria.

Masha não trabalha. Aufere uma pensão psiquiátrica por sofrer de depressão crónica. Hoje é um dia bom, veio até à varanda. Em dias normais fica deitada no quarto a contemplar o tecto, o monumento que mais aprecia, minuciosamente, como se fosse uma planta. Dantes costumava ligar-me, mas infelizmente já não me encontro ao alcance de um telefonema. Há muito que deixei Masha e o mundo, sendo o meu desaparecimento o seu único luto real.

Fuma à varanda o seu Karelia Slim, embora esteja frio e Masha não tenha posto o casaco pelos ombros como costuma fazer. Masha é atreita a vários vícios, fez tratamentos, esteve internada. Fumar permanece um vestígio dessa vida de dependências, o único neste momento.

À sua frente, um edifício construído há pouco mais de um ano, um monólito responsável por lhe roubar a vista da cidade. Um prédio como um muro, mas tanto lhe faz, Masha vê mais para dentro do que para fora. Ilumina-se qualquer pensamento como uma fuga, um desvio para outro caminho que pode ser, sem dúvida, o principal. Por vezes sente o empurrão e o afago das mãos de quem nunca a amou. Pede desculpa pela ousadia de usar a sua imagem em pensamentos: cabelo brilhante, olhos tristes apontados para outra mulher. Nunca se sabe o que sentem aqueles cujos olhos só vêem para dentro, como Masha.

O cigarro esgota-se entre o indicador e o dedo médio. Um cão ladra algures na rua. Um latido que lhe parece o som de um tiro cravado na memória. Masha e a vertigem. Recolhe-se. Fecha-se no quarto apressadamente. O samovar pequeno tomba da bancada da cozinha num estrondo. Masha tem de limpar o líquido cor de ferrugem espalhado pelo chão branco, que alaga o espaço. Por vezes basta um ruído para nos salvar de um pensamento. Ou a vida. Um samovar que cai inexplicavelmente. Afinal alguma alminha boa ou má acompanha a sua solidão de viúva virgem. Sou eu.

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