Há dias, uma nova concorrente entrou no Big Brother de Portugal, Jacques Costa, uma pessoa não-binária que usa pronomes femininos para afirmar a sua identidade. O que poderia ter sido um momento positivo de discussão sobre identidades fora da norma de género tornou-se numa galhofa paródica de completo desrespeito para com Jacques e qualquer pessoa não-binária. O espaço mediático foi ocupado por opiniões ignorantes de pessoas cisgénero que não fazem sequer o mínimo esforço para compreender o outro. Não foi dado espaço a qualquer pessoa não-binária para falar sobre si e criar um espaço de informação para pessoas que não conheçam esta realidade. Foi apenas dado espaço para o vomitar de ignorância e complexos de superioridade. Entendo que é meu direito revoltar-me contra este estado de coisas. Estou aqui para reclamar esse espaço que nós, pessoas não-binárias, enquanto cidadãs e seres humanos, merecemos.
“Eu vou dizer ‘ele’ porque para mim é mais fácil”, disse Cristina Ferreira. Esta frase representa toda a visão com que a Jacques tem sido olhada. Nela estão presentes vários problemas patentes em toda a discussão mediática sobre identidades de género não-normativas. Em primeiro lugar, um completo desprezo pela nossa existência. Não existe qualquer, nem o mínimo, esforço para construir uma ponte de compreensão. Não existe qualquer vontade de nos compreender. Apenas uma redução desumana da nossa existência a um mero capricho porque nós somos assim meio tolinhas e dizemos que queremos ser tratadas por outros pronomes só porque é moda. Disto surge o segundo problema presente nesta frase: a violência subtil a que estamos sujeitas diariamente. A forma como pessoas cisgénero com espaço mediático têm discutido a identidade de Jacques nos últimos dias é assombrosa. O mais assustador é que não têm a menor noção disso, pela forma hegemónica que esta violência é dominante.
E, assim, se legitima essa violência social, se legitima discursos discriminatórios, se legitima “guerras culturais” artificiais, que são totalmente fabricadas apenas para as pessoas andarem desligadas umas das outras. O espaço mediático, desta forma, passa a ser um espaço de violência institucionalizada e não um espaço de informação, de compreensão do outro. Como queremos combater a desinformação e a violência se apenas damos espaço a um tipo de pessoa e não damos espaço para as pessoas cuja vida é discutida em praça pública?
Num estudo recente conduzido pela GLAAD, encontrou-se que 66% dos artigos do New York Times sobre questões trans não citam pessoas trans. Não duvido que em Portugal seja muito diferente, ou até pior, na maior parte dos órgãos de comunicação social. Como é que os media querem ser uma luz que afasta a desinformação se não é nos dado espaço para falarmos sobre as nossas próprias experiências e, dessa forma, informar as pessoas?
Afirma-se sempre que isto são questões complexas, que a maior parte das pessoas não nos compreende. Mas, na minha experiência, sempre que falo sobre a minha experiência enquanto pessoa não-binária, a maior parte das pessoas, até pessoas que inicialmente rejeitam a minha identidade, acaba por compreender o que significa ser não-binário. A nossa identidade não é um monstro de sete cabeças. A maior parte das pessoas, dada a oportunidade, compreende e até, de algum modo, se identifica, porque ninguém se enquadra a 100% nas normas de género ditadas pela sociedade. A sociedade será um meio muito mais saudável e feliz se todas as pessoas compreenderem isso. E não, não precisamos de psicólogos ou psiquiatras a explicar o que são as nossas identidades. Precisamos de um espaço para nós próprias, para podermos falar, ponto final, porque ninguém conhece melhor as nossas próprias vivências.
Reclamo, assim, um espaço na discussão e polémica pública e a oportunidade para todas as pessoas se compreenderem umas às outras e a si próprias, oportunidade essa que está activamente a ser-nos retirada. Deixem-nos falar sobre as nossas experiências invés de tomar a vossa ignorância como referência da razão absoluta. Porque não é. Existe um mundo para lá dessas palas auto-impostas. Só progrediremos enquanto sociedade assim. Só seremos felizes e saudáveis assim. Uma sociedade melhor só poderá ser construída se existir um verdadeiro lugar para a informação, para que possamos realmente nos entender uns aos outros.