Chega: nem carinho nem pancada

Como os incêndios no Verão e as cheias no Inverno, também o sucesso eleitoral da extrema-direita tomou os portugueses de surpresa. Tomou? Uma reflexão sobre as fragilidades da verdade e da democracia.

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Militantes na V Convenção do Chega, em Santarém, em Janeiro de 2023 Paulo Pimenta
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Na ressaca de mais uma cavalgada exponencial do Chega em legislativas, não faltou quem prescrevesse receitas de combate. É natural, mas não é novo: desde que o partido entrou no panorama político português que não falta quem jure a pés juntos ora que “não se pode conversar com o Chega”, ora que “não se pode deixar o Chega a falar sozinho”.

A última iteração deste conflito tem-se centrado menos no que fazer com o partido — a resposta final foi: ninguém sabe — e mais no que fazer com “o seu eleitorado”.

Miguel Pinto Luz, do PSD, afirma que estas pessoas devem ser acarinhadas, mas Miguel Esteves Cardoso defende que é melhor esquecê-los porque são do contra. Se João Miguel Tavares acha que o voto destes eleitores é um “desabafo cívico relevante”, já Carmo Afonso não lhes reconhece o direito às “rebeldias” que defendem.

Isto está uma confusão e ainda nem saímos das páginas do PÚBLICO — porventura uma fragilidade que explica muita coisa.

Um em cada três cidadãos europeus vota em partidos antissistema (que vão da extrema-esquerda à extrema-direita, com diferentes graus de radicalismo). Desse eleitorado, metade apoia partidos de extrema-direita; a outra metade divide-se de forma quase igual entre apoiantes de partidos de extrema-esquerda e apoiantes de partidos populistas que se situam entre os dois eixos.

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VI Convenção Nacional do Chega, em Viana do Castelo, no dia 13 Janeiro de 2024 Nelson Garrido

Este é o estado das coisas: em Portugal, como na Europa, há uma parte muito significativa da população a encontrar respostas na retórica antissistema; e há uma parte bastante significativa da população a apoiar especificamente soluções de extrema-direita, de base nacionalista e xenófoba. Isto são duas coisas diferentes, que em Portugal encontraram uma resposta agregadora no Chega. É um fenómeno que excede as nossas humildes fronteiras — e que o Chega veio aqui manifestar, mas não criou.

Não sou especialista em populismos, extremismos ou movimentos antissistema. Mas sou investigador na área da desinformação e há vários pontos de contacto entre as dinâmicas da mentira e as destes fenómenos que nos podem dar algumas pistas sobre caminhos a seguir.

Pontos de contacto

O primeiro ponto de contacto é o da falta de literacia. Diversos estudos sugerem que a resistência à desinformação vai aumentando com o nível de escolaridade. A educação é a vacina, e quantas mais doses melhor.

Arrisco dizer, contudo, que a propaganda populista nesta era digital, se dispensa quem a questione em demasia, também precisa de quem a saiba pelo menos decifrar. Assim, nem iletrados, nem pessoas de letras. O melhor alvo é aquele que já ouviu falar dos conceitos, dos temas, mas que não os domina (mesmo sem ter consciência disso). Que lê as notícias, mas só até ao segundo subtítulo. Que acompanha a política, mas não conhece as políticas. Que “ouviu dizer”, “leu em qualquer lado”. O Chega teve, como tinha acontecido em 2022, o seu maior eleitorado entre aqueles que superaram o 3.º ciclo, mas não foram para além do secundário.

O mundo é complexo, há demasiada informação e o progresso, tecnológico e social, é acelerado. É normal sentirmo-nos tentados por explicações simples, verosímeis e que nos dão a um tempo um sentimento de pertença a um grupo e de resistência contra uma ameaça comum.

Neste contexto (e em todos), a educação e o conhecimento são fundamentais ao confronto com o desconhecido e com o incompreensível. São a luz que combate a treva. A primeira resposta é a resposta de sempre: precisamos de mais escolarização, mais educação.

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V Convenção do Chega, em Santarém, no dia 28 Janeiro de 2023 Paulo Pimenta
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V Convenção do Chega, em Santarém, no dia 28 Janeiro de 2023 Paulo Pimenta

O segundo ponto de contacto é o da polarização, que é quando o medo da ambiguidade e da dúvida empurra pessoas para trincheiras que supostamente lhes facilitam a vida: dizem-lhes o que são por contraposição ao que não são, oferecem-lhes um mundo a branco e preto, um lado certo e outro errado, e a validação coletiva necessária para não terem de mudar de opinião.

Os estudos demonstram que pessoas com maior inflexibilidade cognitiva aderem mais facilmente a teorias de conspiração e notícias falsas que validam a sua realidade; e rejeitam mais facilmente factos comprovados que contrariam as suas narrativas. Pelo contrário, está demonstrado que quem tem maior flexibilidade cognitiva — aqueles que estão mais disponíveis a considerar informação nova e a mudar de opinião — não só identificam melhor desinformação, mas também o fazem mesmo quando a verdade prejudica a sua mundividência.

A flexibilidade cognitiva, como a muscular, treina-se, trabalha-se, assim haja vontade e ambiente. Na comunicação social, com melhores debates: menos sectários, menos achistas. Nas redes sociais, com menos certezas e mais perguntas. Mais abertura, mais ambiguidade, menos dogmas, mais resistência à desinformação, menos crença nos populistas.

O terceiro ponto de contacto é o da desconfiança nas instituições: no Governo, na imprensa, nos tribunais, na polícia, nos políticos. É um estado de espírito que condiciona o julgamento crítico da desinformação, tanto mais que se predica, muitas vezes, em dúvidas legítimas, injustiças reais, corrupção e abusos de autoridade. É desta desconfiança que os populismos se alimentam, manipulando o que é real e o que não é, as críticas justas e as soluções injustas, até se esquecerem as segundas entre as primeiras. Serve também a desconfiança no sistema como manto protetor do mentiroso: não se acredita no tribunal que condena o mentiroso; no jornalista que expõe o mentiroso; no político de carreira que se opõe ao mentiroso. Quando não se confia na boca que diz a verdade, resta acreditar na mentira.

É preciso reconhecer a legitimidade desta desconfiança. A justiça tem falhado. Os partidos de poder têm falhado. A imprensa tem falhado. Não ceder a generalizações, mas não evitar as responsabilidades nem o caminho necessário para mudar. Mais transparência, mais meios, mais independência, menos negociatas, menos compadrio, menos complacência. Se os partidos de poder não são capazes de o fazer, se apodreceram por dentro até ao imobilismo, então não são solução — e não se tornam uma apenas porque a alternativa é pior.

O quarto e último ponto de contacto é o da exclusão social. O esquecimento, o abandono são fundamento de revolta, mas também desejo de pertença. São indignação e despeito, mas também vulnerabilidade e desproteção. A Internet e as redes sociais oferecem visibilidade e comunhão. As dinâmicas de grupo são determinantes em campanhas de desinformação — a partilha de uma verdade de grupo, o combate coletivo a uma mentira. É também dessas dinâmicas que se aproveitam os populistas. Ser visto e ouvido é, para pessoas invisíveis, a maior gentileza possível — e isso permite desculpar muita coisa.

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Campanha do Chega em Santarém para as eleições presidenciais, no dia 13 de Janeiro de 2021 Nuno Ferreira Santos

Mentir com a verdade

Educação, diálogo, reforma de instituições e inclusão social: o caminho passa por estes eixos. Não há um eleitorado do Chega, há um conjunto de eleitorados que interagem com um ou vários destes eixos, sem precisarem verdadeiramente de interagir entre si.

Não precisam, por isso, de carinho, como se fossem uma massa uniforme e infantil de pessoas carentes. Não podem, nem devem, ser extirpados da sua cidadania por terem participado na democracia de uma forma que nos indigna — e que potencialmente a fragiliza.

Dentro dos eleitores do Chega nas legislativas de 2024 coube muita gente: neonazis encartados e agricultores de Elvas à míngua; machistas ultramontanos de boas famílias e pessoas pobres nas margens das grandes cidades. Os seus votos são todos iguais, as suas motivações são diferentes entre si.

Se não lhes quisermos dar mais nada, reconheçamos-lhes, pelo menos, a dignidade de não os confundirmos uns com os outros.

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Apoiantes Chega durante um comício de campanha na Praça do Giraldo, em Évora, no dia 20 de Setembro de 2021 NUNO VEIGA/Lusa
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V Convenção do Chega, em Santarém, no dia 28 Janeiro de 2023 Paulo Pimenta
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V Convenção do Chega, em Santarém, no dia 28 Janeiro de 2023 PAULO PIMENTA

O Chega é de uma família política que tem vários representantes a governar pela Europa fora. Sabemos perfeitamente o que acontece nesses casos: a independência dos tribunais piora, a liberdade de imprensa é atacada, os direitos das minorias sofrem, a qualidade da democracia afunda. É assim, por exemplo, na Hungria, de Viktor Órban, que gravou um vídeo de apoio a Ventura — um momento que teria sido revelador se perdêssemos mais tempo a noticiar o que acontece no mundo quando se coloca um Ventura no poder e menos tempo a noticiar o que diz um Ventura para lá chegar.

A democracia liberal não é uma forma de governo desenhada para agradar a toda a gente, assim como a liberdade de expressão não está constitucionalmente consagrada para proteger ideias simpáticas. É este o sistema que defendemos, de pesos e contrapesos, de consensos e concessões, de dissenso em igualdade, de respeito na diferença.

Em Portugal, votou-se em massa e o resultado desse processo democrático amplamente participado foi uma votação significativa num tipo de partido que, noutros países, reduziu (ainda mais) a qualidade da democracia. Sempre houve caminhos democráticos para desfazer democracias — para surpresa de ninguém —, assim como sempre houve formas de mentir com a verdade. Quando as fundações de uma casa são frágeis, o tecto que nos abriga é o mesmo que nos esmaga.

O tempo não está nem para carinhos coniventes nem para derivas antidemocráticas “boazinhas”. É essencial — urgente — reforçar a democracia, agindo nestes eixos comuns de que se alimentam a desinformação e os populismos: falta de literacia, maniqueísmos, instituições desacreditadas e exclusão social. A maioria das soluções necessárias precisa de tempo, coragem e consensos, mas deve começar a ser construída agora, através de sinais claros de mudança de rumo.

A democracia e a verdade não devem meter medo a ninguém. A sua fragilidade sim.


Advogado e investigador na área da desinformação

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