Coração do Oceano é um nome de um barco em Rabo de Peixe. Podia ser também o nome desta vila piscatória nos Açores onde o mar ainda comanda os quotidianos, edifica afetos e determina o pulso das emoções.
Apesar dos dados dos últimos censos apresentarem um panorama menos favorável que o nacional, no que respeita ao desemprego (10,78%) ou às qualificações da população (apenas 7,66% tem ensino superior completo), Rabo de Peixe está longe de corresponder ao retrato estigmatizante de pobreza traçado na série da Netflix. É sobretudo uma freguesia que preserva uma longa tradição de trabalho no sector das pescas, trabalho esse que não foi suficientemente cuidado e valorizado ao longo dos tempos.
É o caso de Eduardo, pescador desde os nove anos, que revela que a sua reforma não é suficiente para pagar as contas ao fim do mês. Ou dos pescadores no activo que lamentam as teias da burocracia, a complexidade das directivas comunitárias ou as leis de mercado que gerem os seus ganhos em lota. Idiomas que pouco dizem a quem habituou os seus olhos a decifrar o trajecto das espécies marítimas, a ler intuitivamente mudanças no estado do mar, a antecipar tempestades e bonanças.
Nos coloridos de Rabo de Peixe, as pessoas dizem-se esquecidas e desinteressadas pela política. Indignam-se com a corrupção e com as famílias que beneficiam do RSI, apesar destas representarem uma fracção relativamente marginal da população activa (cerca de 10% segundo os censos 2021). Nas mais recentes eleições legislativas, a abstenção em Rabo de Peixe superou os 74%, o Chega ficou em segundo lugar com cerca de 25% dos votos.
Surpreendemo-nos com estes resultados, mas basta irmos ao encontro dos lugares e dos grupos sociais mais invisibilizados para compreendermos o que se passa. O descontentamento parece acompanhar o lastro de políticas desenhadas de centros muito distantes do pequeno largo da igreja de Rabo de Peixe. Políticas alheias às especificidades locais, que foram sucessivamente pressionando uma economia menos exigente em conhecimento, não providenciando a devido tempo as qualificações, oportunidades e alternativas — que não a tímida assistência social – àqueles que assistiram à insolvência progressiva dos seus modos de vida.
É incontornável não associar a sombra que paira sobre a democracia aos territórios e comunidades que foram sendo remetidos para as traseiras do circuito de desenvolvimento e das transformações socioeconómicas em curso. Sucessivos governos optaram por maximizar a competitividade do país privilegiando certos sectores económicos (como o turismo ou o imobiliário) em detrimento de outros, ao mesmo tempo que minimizaram as funções sociais, distributivas e reguladoras do Estado em prol dos balanços de tesouraria. Para agravar, tornaram-se mais permeáveis aos interesses económicos e com isso às dinâmicas da corrupção.
O resultado é um país mais polarizado onde conflito social se adensa e a confiança no sistema político diminui. O ressentimento nunca foi uma boa bússola e já será tarde quando os descontentes se aperceberem que confiaram mal o seu grito de protesto. O maior combate que temos pela frente implica sarar as farturas criadas, exigir que o bem-estar desagúe nas praças de gente cujas expectativas foram sendo frustradas ao longo do tempo, não deixando que o Chega seja o seu único interlocutor e a sua única voz.
A sociedade civil, a academia ou os partidos políticos que outrora foram proa da emancipação social, devem mobilizar-se em torno das assimetrias e dos problemas que afectam hoje o território nacional, ouvindo as pessoas, estando presentes e desenvolvendo soluções que projectem o seu horizonte no futuro. Não por acaso Zeca Afonso, um dos mais hábeis e intuitivos maestros do músculo emocional do povo, tinha especial carinho por outra terra de pescadores, a Fuzeta.
Nos Açores, acompanhando a revista digital de jornalismo narrativo DIVERGENTE no âmbito da reportagem “A bomba relógio da abstenção”