Saber programar deixa de ser essencial, diz chefe de tecnologia da Amazon
Com ferramentas de IA a começar a programar, o responsável de tecnologia da Amazon acredita que é preciso repensar o ensino. “Mais pessoas vão poder trabalhar em informática”, diz Werner Vogels.
Tal como deixou de ser necessário saber ler mapas para conduzir até novos destinos ou fazer contas para partilhar o pagamento de um jantar, a habilidade de programar vai deixar de ser essencial para criar apps ou programas online – e isso não é necessariamente mau. Esta é a visão partilhada por Werner Vogels, o responsável pela tecnologia da Amazon, durante uma conversa com o PÚBLICO sobre as mudanças no sector tecnológico e o impacto da inteligência artificial (IA) generativa, que é a base do ChatGPT, nos próximos anos.
Para Vogels, a utilização de mais assistentes de IA na programação é uma das principais tendências de 2024. A transformação do modelo educativo, para acompanhar a tecnologia, é outra. “Vamos ter de repensar o ensino”, defende o neerlandês. “Com o avanço tecnológico, as pessoas deixam de precisar de saber programar para desenvolver programas online. A criatividade basta”, explica o especialista, que dirige o sector de tecnologia da Amazon há duas décadas e é um dos principais arquitectos da AWS (Amazon Web Services), o braço da empresa que oferece serviços para criar e hospedar sites e apps.
Transformar a programação numa tarefa mais acessível a todos é uma frente estratégica para a tecnológica. Em 2023, a AWS anunciou o CodeWhisperer (algo como “sussurrador de código”) que usa IA para sugerir novos blocos de código informático a programadores e corrigir erros, enquanto criam aplicações. A ideia é que seja capaz de fazer cada vez mais, transformando ideias em código.
A AWS não está sozinha na corrida. Um dos principais rivais do CodeWhisperer, é o GitHub Copilot, um programa desenvolvido pela subsidiária da Microsoft que sugere linhas de código com base no extenso repositório de código aberto do GitHub. Há ainda ferramentas como o OpenAI Codex e a Tabnine.
Preocupações antigas
Com a tendência surgem preocupações de que milhares de programadores em todo o mundo fiquem sem emprego. Uma análise de Janeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI) indica que 40% dos empregos já estão a ser afectados – desaparecendo ou mudando significativamente – devido à inteligência artificial. O presidente executivo da Nvidia, Jensen Huang, também tem repetido a ideia de que programar vai deixar de ser fundamental.
O responsável pela AWS vê os receios como parte de uma narrativa antiga. “Quando se está na indústria há algum tempo, vemos estas preocupações a repetirem-se vezes sem conta”, observa o neerlandês. A chave é “identificar novas oportunidades”.
Vogels usa o caso da indústria do gelo como exemplo: “Hoje, temos frigoríficos em casa. Quando apareceram, mataram a venda de enormes blocos de gelo para os alimentos frescos. Muitas pessoas no negócio do gelo perderam o emprego, mas surgiram novos negócios, porque, com a inovação, todas as pessoas podiam comprar mais alimentos que não se estragavam.”
Exemplo disso é a aposta da AWS em usar grandes modelos de linguagem, a base da IA generativa, para criar ferramentas que simplificam o processo de programar. Faz parte do ADN do braço da Amazon que nasceu quando a empresa percebeu que podia vender a tecnologia que desenvolveu para tornar-se numa gigante do comércio online.
“O facto de termos a IA a ajudar-nos em cada vez mais tarefas não quer dizer que ‘deitamos fora’ o pensamento crítico”, insiste o neerlandês Vogels.
Apesar de dominar o inglês, o tecnólogo da Amazon admite que recorre a ferramentas de IA com frequência para rever textos. “O Inglês continua a ser a minha segunda língua. Uso muitas ferramentas para corrigir e limar aquilo que escrevo”, partilha. “E criei um modelo com as ferramentas da AWS para pesquisar as minhas apresentações antigas e encontrar facilmente um slide que usei no passado.”
“Vamos sempre precisar de engenheiros”, garante Vogels. “Só que mais pessoas vão poder trabalhar em informática e desenvolver tecnologia.”
Humano no centro
Mesmo que deixe de programar directamente, o humano deve continuar envolvido no processo. “Temos de nos lembrar que os modelos de IA não pensam. Os modelos condensam expressões que ficam bem juntas no contexto que a pessoa deu”, nota Vogels. “O foco do ensino primário tem de ser ensinar as pessoas a pensar, a reflectir, a adaptarem-se a situações e a usar o cérebro”, explica. “É preciso saber reflectir sobre os erros e perceber quando é que um sistema não funciona bem.”
Vogels lembra o escândalo com o sistema fiscal dos Países Baixos. Em 2019, descobriu-se que as autoridades neerlandesas usavam IA para detectar e prever fraude fiscal. Milhares de pessoas foram obrigadas a pagar valores exorbitantes, por engano, porque o sistema considerava que ter dupla nacionalidade ou baixos rendimentos era um factor de risco. O problema demorou anos a ser detectado e corrigido.
É um dos vários casos que motivaram os esforços da União Europeia para criar uma regulação para o sector da inteligência artificial, aprovada a 13 de Março (a entrada em vigor ainda vai demorar).
“As máquinas podem fazer previsões ou dar sugestões, mas não podem tomar decisões. Esse é o papel do ser humano”, salienta Vogel. “As ferramentas de IA são precisamente isso, ferramentas.”