Sobre a utilidade da ciência inútil
À boleia da “bazuca” do PRR, que visa dinamizar a economia europeia pós-covid-19, o último concurso de financiamento de projetos pela FCT espelha um total desconhecimento sobre o que é fazer ciência.
Fundamentalmente, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) desistiu da ciência. E os cientistas vão acabar por desistir da FCT.
Não é de agora que FCT e comunidade científica andam desencontrados. Tem sido uma relação tóxica de há vários anos, de constante desconfiança, e sem que se queira assumir um compromisso duradoiro e de longo prazo. Vive-se um dia de cada vez, com a clara consciência de que amanhã tanto nos faz se estamos juntos no mesmo barco ou cada um a remar para seu lado.
Começo por salientar que sou daqueles que acha que a FCT tem uma missão quase impossível e que faz verdadeiros milagres com os recursos que tem à sua disposição. Tem coisas muitíssimo boas, como é exemplo o concurso anual para atribuição de bolsas de doutoramento individuais em todas as áreas do conhecimento, que têm servido de base de sustentação do nosso sistema científico ao longo dos últimos 30 anos, apoiando os mais jovens talentos do nosso país e tendo como único critério o mérito científico, como deve ser. Acredito que é gente bem-intencionada, competente e trabalhadora. Mas “no melhor pano cai a nódoa”.
O último concurso de financiamento de projetos pela FCT, à boleia da “bazuca” do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) que visa dinamizar a economia europeia pós-covid-19, espelha um total desconhecimento sobre o que é fazer ciência e de todo o processo que vai desde o avanço no conhecimento até se ter um verdadeiro impacto na economia. Financiar a ciência em Portugal tornou-se um processo autodestrutivo capaz de afastar os nossos melhores cientistas da ciência e premiando os mais resilientes/resistentes/desesperados, num último sopro de vida para se manterem à tona.
Se o objetivo, em si meritório, era inventar recursos para financiar a ciência em Portugal, a receita revelou-se um verdadeiro desastre. Para que se entenda bem do que estamos a falar, é o mesmo que pedir ao Cristiano Ronaldo para marcar golos com uma bola de râguebi.
Desde um concurso que limita em 10% o conteúdo de investigação fundamental em cada proposta até à exigência de cumprir requisitos não-científicos, fica ainda por se saber quem se irá dar ao trabalho de avaliar estas propostas e em que moldes o seu financiamento será decidido. A julgar pelo processo implosivo da candidatura em si, arrisco-me a antecipar que não conheço muitos cientistas respeitáveis que estejam dispostos a avaliar tais propostas exaustivamente recheadas de aspetos burocráticos, “para Bruxelas ver”.
É caso para dizer que os fins não podem mesmo justificar os meios. A minha resposta a este modelo foi um rotundo NÃO, simplesmente porque não estava ainda suficientemente desesperado, como estarão porventura muitos outros colegas que se viram obrigados a alinhar por este fado. Fui forçado a escolher entre manter a minha sanidade mental (a pouca que ainda me resta…) e dedicar a minha energia intelectual para fazer alguma ciência, ou optar por desistir dela de uma vez por todas. A escolha não foi difícil, só não sei ainda qual o preço a pagar.
Lamentavelmente, e digo isto com profundo desgosto, ainda não se percebeu que para se fazer a melhor ciência, os cientistas precisam de tempo e de uma tranquilidade quase celestial para mergulharem a fundo sobre as grandes questões do nosso tempo, sem que se percam em labirintos burocráticos de um qualquer balcão de fundos comunitários.
O que é ser cientista
Mas falemos um pouco sobre o que é ser cientista. Um cientista, tal como eu o vejo e vivo, é alguém naturalmente insatisfeito pelas respostas que encontra, obcecado por fazer perguntas e em satisfazer a sua curiosidade inata, de forma a compreender o mundo que o rodeia. Para a ciência, a dúvida é o combustível e a criatividade, o oxigénio. Remover qualquer um destes componentes é arder em lume brando, com a certeza de que a chama se apagará e sem que sintamos que de alguma forma se esteja a fazer a diferença.
Mas isto traduz-se em quê, mais concretamente? Como é que a minha curiosidade pode ter impacto na vida dos outros? Porque é que devemos gastar o dinheiro dos contribuintes em satisfazer a curiosidade de uns “cromos” raros que nunca estão satisfeitos com nada e não se sabe muito bem o que andam a fazer?
Felizmente, a história da humanidade dá-nos todas as respostas para estas perguntas e muitas outras. Concentremo-nos apenas em tecnologia e nas grandes revoluções na área da medicina, porventura aquelas que têm um impacto maior na vida das pessoas. A procura de respostas para perguntas profundas, motivada exclusivamente pela curiosidade e sem qualquer preocupação com a sua aplicação, tem levado não só às maiores descobertas científicas, como também tem sido a principal responsável pelos maiores feitos tecnológicos ao longo dos séculos.
Da descoberta dos antibióticos, das vacinas (incluindo as recentes vacinas de mRNA que mudaram o rumo da pandemia covid-19), de todo o conhecimento por trás das tecnologias de PCR (usadas também no diagnóstico de covid-19), sequenciação do DNA e de genomas, terapia e diagnóstico genéticos, edição de DNA usando como base um sistema de defesa contra vírus existente em bactérias (conhecido por CRISPR-Cas9), tudo isto aconteceu sem qualquer propósito de aplicação à partida e muitas vezes por mero acaso.
Numa outra vertente, os computadores, microchips e a própria eletricidade não seriam possíveis sem a mecânica quântica. E sem a teoria da relatividade geral proposta por Einstein não haveria sistemas de navegação GPS. Contudo, Einstein nunca perdeu um segundo a pensar de que forma as suas descobertas poderiam ser úteis. Se houve alguma coisa que aprendemos ao longo da história foi de que a humanidade é mesmo extraordinária em aplicar o conhecimento quando ele existe e está à vista de todos. Como dizia Louis Pasteur, “não há ciência aplicada, mas sim aplicações da ciência”.
Tenho assistido, de certa forma amargurado, a um crescente desinteresse dos nossos melhores e mais jovens talentos académicos pela investigação fundamental. E este concurso da FCT explica muito bem este fenómeno. Todos querem curar doenças e transformar o mundo tendo como base a ideia de que dispomos hoje de toda a informação necessária para o podermos fazer, mesmo sem recorrer a qualquer experiência científica, à distância de meia dúzia de cliques e sem ter de sujar as mãos.
Numa recente intervenção que se pretendia inspiradora para os mais jovens, senti o impulso de trazer para discussão a importância da “inutilidade” da ciência no desenvolvimento da humanidade. Entre várias coisas, esta foi uma oportunidade para explicar o tipo de questões que me tiram o sono atualmente e de chamar a atenção dos mais jovens para aquilo que só a ciência nos consegue dar: o prazer inigualável da descoberta. Esta minha intervenção espontânea, e não muito refletida, acabou por chamar a atenção do meu colega matemático Hugo Tavares, do Instituto Superior Técnico, que no final da sessão me veio falar de um livro incrível que devia ser de leitura obrigatória para quem tem responsabilidades de definir políticas científicas, intitulado The Usefulness of Useless Knowledge (em português, “A Utilidade do Conhecimento Inútil”), da autoria de Abraham Flexner.
Abrahm Flexner foi o diretor e fundador do Institute for Advanced Study, em Princeton, nos EUA, que conta no seu currículo a proeza de ter conseguido persuadir Einstein a mudar-se para a América durante o período de ascensão da Alemanha nazi que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Confesso que não conhecia o livro, mas comprei-o de imediato e devorei-o em dois dias.
Foi por isso com agrado e com a motivação reforçada que vi que não estava sozinho nesta luta pela “inutilidade” da ciência e que mais alguém da importância e com a visão de Abrahm Flexner partilhava da mesma opinião. Ao fundar o Institute for Advanced Study, Flexner pretendia criar um ambiente único que fosse uma espécie de paraíso académico, sem responsabilidades de ensinar ou qualquer tipo de dever administrativo, permitindo que as mentes mais brilhantes do seu tempo se pudessem concentrar exclusivamente em questões fundamentais, numa procura incessante e desobstruída do conhecimento “inútil”, cujos frutos, se os houvessem, demorariam décadas a consolidar.
Deste paraíso científico nasceu o primeiro computador digital, a primeira previsão do estado do tempo, e a base tecnológica que permitiu aos Estados Unidos anteciparem-se aos nazis na corrida à bomba atómica e que o mundo democrático ganhasse a Segunda Guerra Mundial para hoje vivermos em liberdade. Nada mau para ciência “inútil”.
Ainda há pouco tempo o Presidente Barack Obama lembrava que vivermos em democracia não é um dado garantido e que precisamos sempre de lutar por ela. No que diz respeito à ciência fundamental, diria que é exatamente a mesma coisa.
A chamada “ciência por objetivos”
Nos dias que correm, quase todo o sistema de financiamento da ciência, e a FCT não é exceção, nos empurra para a ciência aplicada e de consumo imediato. É a chamada “ciência por objetivos” e dos work packages, com contrato promessa de entrega de um produto “chave-na-mão”.
À primeira vista, poderemos pensar que faz todo o sentido, porque o financiamento é escasso e por isso devemos concentrar todos os esforços na procura de soluções para problemas concretos. Estou absolutamente convicto de que não podemos estar mais errados e esta vista curta estará condenada ao fracasso.
Só quem nunca fez ciência é que não sabe que as principais descobertas surgem de onde menos se espera, sem nunca termos andado à sua procura. Surgem da incerteza e do falhanço em atingir os principais objetivos que nos tínhamos proposto. Surgem do acaso e dos caminhos menos percorridos e fora de modas. Apoiar não só a investigação aplicada, mas também aquela que ainda não foi aplicada, é um imperativo societal absolutamente crítico para garantir o círculo completo da inovação, sob pena de comprometermos a capacidade científica do nosso país e das gerações futuras. Quem não compreender isto, é verdadeiramente inútil para a ciência.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico