“Posso verde?” ou a economia na utilização das palavras
Esta estranha forma de economia verbal pode sair cara. Porque as palavras são caras. E as frases também. E a delicadeza igualmente.
“Posso verde?”, pergunta uma menina de oito anos ao seu colega do lado. Não parecendo estranhar a pergunta, este passa-lhe o lápis de cor verde, para que a colega possa sublinhar o grupo nominal de uma frase, no seu caderno diário. A menina segura no lápis, realiza o exercício e volta a colocar o objeto no estojo do colega. Tudo pareceria muito normal… não fora a minha indignação!
E, quando falo em indignação, já não refiro o espanto, pois de início ainda ficava surpreendida quando ouvia as crianças a comunicarem neste modo de economia verbal. Mas agora já não me admiro. Embora possa parecer desconcertante, esta forma de comunicação parece ter-se tornado normal. Mas eu não a normalizo. Não posso fazê-lo. Foi essa postura de não normalização que me levou a meter de permeio, mediando a comunicação entre os dois colegas de carteira.
Perguntei à menina se aquilo que ela pretendia era pedir um lápis verde emprestado ao colega. Perante a sua resposta afirmativa, sugeri-lhe que perguntasse ao colega se poderia emprestar-lhe um lápis verde, se faz favor, e que, depois de o devolver, seria simpático agradecer-lhe. E, a seguir, agarrei no lápis verde e ensaiámos retrospetivamente este pedido, utilizando frases completas, com princípio meio e fim, com as normas de cortesia associadas.
A pergunta “Posso verde?” é um simples exemplo de comunicação baseada na economia de palavras empregue por muitas crianças dos nossos dias. Em vez de verde, poderia ser azul, vermelho ou amarelo. Ou, então, poderia ser borracha, afia ou cola. Ou, ainda, banana, maçã ou bolacha. O que se pretende pedir tanto faz: o modelo é sempre o mesmo.
Esse modelo restringe-se à utilização do verbo auxiliar e do nome, sem recorrer a mais vocábulos. E não, não se pense que se trata de uma forma de comunicação utilizada apenas em meios mais desfavorecidos. Esta forma de comunicação é transversal e é utilizada por um número expressivo de crianças, nos mais diversos contextos.
Poderíamos atribuir esta economia verbal à escrita de mensagens no telemóvel, mas na verdade as crianças que começam a falar assim ainda são demasiado pequenas para escrever mensagens. Poderíamos pensar que as famílias têm menos tempo para falar com as crianças, mas também não me parece que essa hipótese – apesar de poder ser correta em determinados contextos − corresponda sempre à realidade.
Não conseguindo identificar claramente a causa, prefiro deter-me na consequência, que essa, sim, é fácil de prever. A economia na utilização das palavras, na construção de frases e nas formas de cortesia tem impacto a diversos níveis: na apropriação do vocabulário, que se torna inevitavelmente mais pobre; na construção gramatical das frases, que se torna inevitavelmente mais incorreta; e nas normas de convivência social, que se tornam inevitavelmente menos polidas.
Estas consequências levam-me a pensar que esta estranha forma de economia verbal nos pode sair cara. Porque as palavras são caras. E as frases também. E a delicadeza igualmente. Então, para que, no futuro, não tenhamos que pagar por aquilo que nos é tão caro, podemos fazer por o reverter no presente, com uma atenção redobrada.
Primeiro, sabendo que nós, adultos, nos damos como modelo, podemos ser especialmente cuidadosos na comunicação com as crianças, procurando utilizar um vocabulário acessível, mas diversificado, organizado em frases simples, mas bem elaboradas, que se vão tornando progressivamente mais complexas, de modo a favorecer a interação com os outros.
Segundo, quando ouvirmos as crianças a comunicar em modo de economia verbal, resta-nos sempre a possibilidade de lhes devolver as palavras e as frases completas e bem estruturadas, entrando na conversa, tal como eu fiz quando a menina perguntou ao colega “Posso verde?”. E não necessitamos de o fazer de forma crítica ou severa. Podemos fazê-lo com gentileza e empatia. Mas sem nos abstermos de lhe conferir a importância que efetivamente tem. Porque, pelo menos eu, não posso: “Eu não posso verde.”
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990