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“Debaixo da Ponte”: o retrato de quem vive à margem, em Lisboa

Ao longo de três anos, Guillermo Vidal documentou o quotidiano das pessoas em situação de sem-abrigo, em Lisboa. "Estamos todos muito mais próximos de nos tornarmos sem-abrigo do que milionários."

Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
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Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal

Poucos meses após o início da pandemia, em 2020, o fotógrafo Guillermo Vidal decidiu dar início a um projecto que viria a marcar o seu percurso até ao presente. Under the Bridge retrata um conjunto de pessoas em situação de sem-abrigo que vivem em torno da estação de Santa Apolónia, em Lisboa. “Num espaço limitado, mas ocupado por muitos”, como refere Guillermo na sinopse do projecto, o fotógrafo (que também fotografa para o PÚBLICO) documentou o quotidiano da comunidade, profundamente marcado pela pobreza e pelo desalento.

Debaixo de um viaduto, onde muitas destas pessoas se abrigam do sol e da chuva, Guillermo sabia que iria deparar-se “com uma realidade difícil”, contou ao P3. “Decidi tratar a todos como trataria um familiar meu: com todo o respeito e com todo o à-vontade. Passava os dias em conversas com eles, cozinhava em casa e partilhava com eles as minhas refeições. Pensaram, no início, que era estranho que o fizesse, mas devagar começaram a abrir-me o seu mundo.”

Assim chegou a uma relação de confiança com as pessoas que vivem, de forma muito precária, naquela zona da capital. “Posso partilhar dezenas de histórias, porque os conheço a todos, passei com eles muitas horas.” E partilha a história de M., que vive praticamente todas as horas do dia no interior da sua tenda, debaixo do viaduto. “O seu passado está ligado ao consumo de droga e ao encarceramento, mas hoje, livre de qualquer dependência física, enfrenta uma depressão. Não sabe o que fazer com as 24 horas do dia e não está a saber lidar com a situação em que se encontra.”

B. vive há 20 anos sem um tecto. “É uma pessoa extremamente inteligente, fala várias línguas. O seu passado está ligado à música, mas o consumo de drogas empurrou-o para a rua.” Existem pessoas de várias origens na mesma situação. “Há muitos portugueses, mas também pessoas provenientes do continente africano e asiático. No caso dos últimos, o principal motivo pelo qual não conseguem arranjar uma casa é a dificuldade em regularizar a sua situação no país.” Burocracia, em suma. “A maioria dessas pessoas trabalha, à jorna, mas muitas vezes não é paga.” Os consumos não são o principal problema deste grupo em particular. “Mais recentemente noto uma vaga de novos consumos de crack. Quem vive nas ruas está muito exposto a estas ameaças.”

Ao longo dos últimos anos, Guillermo observou também o padrão de intervenção no terreno das várias organizações de apoio social no local. “Existe alguma falta de coordenação no apoio”, refere. “As organizações fazem, evidentemente, o melhor que podem, mas existe alguma falta de coordenação entre elas, o que conduz a, por exemplo, que haja distribuição de refeições nos mesmos locais e nos mesmos dias. Ninguém consegue comer cinco refeições num só dia.”

O desperdício ou a tentativa de armazenamento dessas refeições conduz a situações de risco para a saúde pública. “Não há frigoríficos onde possam conservar a comida e, quando as pessoas a consomem no dia seguinte, ela já pode estar degradada, dando origem a gastroenterites ou intoxicações. Assim, grande parte das refeições acaba por ir para o lixo” O armazenamento indevido atrai também roedores, o que, aponta Guillermo Vidal, constitui outra ameaça à saúde de quem ali vive.

Em teoria, existem soluções para que as pessoas em situação de sem-abrigo não pernoitem na rua. Os albergues municipais têm disponíveis camas para atender a esses casos. “Os albergues reúnem, no mesmo espaço, dezenas de utentes”, explica o fotógrafo. No interior dos albergues não são permitidos consumos de drogas ou álcool e os horários de funcionamento estipulam horários rígidos de entrada e saída de utentes. “O que acontece, na realidade, é que se reúnem, num espaço muito limitado, pessoas que estão, muitas vezes, em ressaca de consumos.” A instabilidade emocional, que se traduz em ruído e conflito, refere o fotógrafo, faz com que seja impossível descansar nesses lugares. “As regras em vigor nos albergues não são compatíveis com as suas necessidades.”

“Na rua, a vida é difícil”, conta o fotógrafo de 30 anos, natural da Venezuela, que cresceu na Murtosa, em Aveiro, e reside, há quase dez anos, em Lisboa. “As pessoas que vivem em situação de sem-abrigo nem sempre conseguem manter as amizades ou as ligações familiares. “Muitos não querem que família saiba que vivem na rua, sentem vergonha. Uma das pessoas que conheci disse que o seu maior desgosto seria que o filho, a quem deu tudo ao longo dos anos, descobrisse que vive naquelas condições.” Não é o caso, assegura, de nenhuma das pessoas que retratou para o projecto.

“As pessoas que retratei vêm agora à exposição, à Narrativa”, refere, aludindo para exposição colectiva que resulta dos trabalhos desenvolvidos durante a Masterclass ministrada por Mário Cruz entre Outubro de 2023 e Fevereiro de 2024, patente em Lisboa, que termina a 13 de Abril. A Masterclass, conta o fotógrafo, ajudou-o a “fotografar estas pessoas de uma forma digna, não condescendente e sem cair em cliché”.

Guillermo Vidal sabe que a publicação do projecto num artigo de jornal, numa exposição ou num livro (como tenciona fazer futuramente), “não irá resolver o problema das pessoas” que retratou. “Gostaria, no entanto, de ter um pequeno impacto. Gostaria de ser capaz de mobilizar a instalação de casas-de-banho portáteis junto aos locais onde se encontram, por exemplo. É muito importante e faz toda a diferença nas suas vidas.”

Under the Bridge tem como objectivo consciencializar para o quotidiano difícil das pessoas em situação de sem-abrigo. “Quero mostrar que estamos todos muito mais próximos de nos tornarmos pessoas em situação de sem-abrigo do que milionários.” O viaduto, a ponte, é uma metáfora, realça. “É como se fosse um espelho: em cima da ponte não queremos ver o que se passa debaixo dela. Por isso olhamos para o lado, fazemos julgamentos sem realmente conhecermos a realidade.”

Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal
Fotografia do projecto <i>Under the Bridge</i>, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril
Fotografia do projecto Under the Bridge, em exposição na Narrativa, em Lisboa, até 13 de Abril ©Guillermo Vidal