Nuno Júdice: O cristal e a chama
Três eixos para ler a sua obra, evocando um poeta do amor e do tempo, um poeta da poesia. Texto dedicado a Manuela Júdice, Luís Filipe Castro Mendes e Didas.
A poesia é fulguração, figuração, conceito
A questão fundamental que atravessa a poesia e a obra de Nuno Júdice é, desde a sua estreia, nos finais de 1960 (a edição de Poesia Reunida, com chancela da Dom Quixote, em 2000, assinala essa data como tempo fundador), a questão-linguagem. Ou, se quisermos, a linguagem como questão. O texto de abertura do seu livro de estreia, A Noção de Poema (1972) colocava como alfa e ómega de uma escrita a fazer-se essa preocupação pela noção, o conceito, a definição do poético: “Como iniciar o canto, a homenagem às cidades / imprevisíveis do continente fulgurativo?” (p.15 – sigo a 1.ª edição). Esse título, A Noção de Poema é, como já alguns disseram, um título programático.
A poesia far-se-á, até ao seu último livro de inéditos, Uma Colheita de Silêncios (Dom Quixote, 2023) sempre em função desse postulado. Como dizer, na primeira pessoa, ou em regimes mais impessoais, a poesia como continente; o poema como lugar-texto onde se expandem e fulguram as coisas do mundo que o poeta interpreta irónica e nostalgicamente? O poema transforma a realidade em personagem e a saudade do poético passa por se adivinhar a perda do poder de nomeação: “Chegando à ponta da falésia, ao crepúsculo, / o ocidente veio ter comigo” (Uma Colheita de Silêncios, 2023, p.92).
Em Meditação Sobre Ruínas (1995) o sujeito, carregado sempre da memória literária, reactivando sempre processos pessoanos de angulosa sintaxe, numa elaboração onde coloquialidade e erudição se aliam sabiamente, não hesita em pôr Orfeu (o símbolo da poesia, por excelência) num armazém do porto “entre caixotes de marcadorias/ e roldanas sem préstimo” (p.57); um Orfeu com quem o poeta fala e de quem se despede, sem olhar para trás, porque na ruína do mundo os lugares do sentido do humano estão já vazios (as cidades);
Um programa poético
Um livro com um semelhante título, A Noção de Poema desafia a própria lógica evolutiva da poesia portuguesa nessa fase de transição de 60 para 70, quando a uma poética textualista e centrada na valorização da palavra, núcleo intensificador do discurso em Poesia 61 (Fiama H. Pais Brandão, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito), se opõe uma poética da narratividade. Entre a poética do nome em Fiama, ou a estética de escassez de Gastão Cruz, ou o “surrealismo vigilante” de Luiza, o que vemos acontecer nessa passagem de 60 para 70, é uma gradual transmutação da centralidade da metáfora para o que, com algum equívoco, se veio a consagrar como “regresso ao real”.
A poesia, na verdade, nunca regressou ao real senão dela própria. Os que a quiseram literalizar mais não fizeram que empobrecer a imaginação que ela, como arte verbal, num século de ouro, produziu. É em defesa da poesia como resultado duma “engenharia meia-anoitecida das manipulações” (Júdice, 1972) e da poesia como teatro (“A poesia é o teatro”, lê-se no poema “Os Modos Desconhecidos de Ser”, também do livro de estreia) que a voz judiciana se revela como das raras vozes que conseguiram unir as duas genealogias da poesia ocidental.
No autor de O Movimento do Mundo (1996) a reincidência no tema da escrita prende-se com a tentativa de unir o cristal e a chama do literário. Ao “mecanismo romântico da fragmentação” que pulveriza o poema e o torna narrativo (a genealogia da chama: de Álvaro de Campos a Herberto), somar a silenciosa e concentrada especulação sobre o poema (a linhagem do cristal: de Carlos de Oliveira a Manuel Gusmão). Os poemas longos de Nuno Júdice derivam justamente dessa tentativa de harmonização, transformando a poesia em canto, elegia, litania: Um Canto na Espessura do Tempo (1992). Poeta do amor e do tempo, poeta da poesia, a escrita tolda-se dessa “melancolia que define tudo: “desde a emoção do rosto até / à montanha do sol posto” (Júdice, 2000:440)
Bucolismo, enigma da poesia e despedidas
Com A Partilha dos Mitos (1982), abre-se a obra de Júdice para uma segunda fase em que a questão do poema como teorização do cristal e da chama não se põe de parte, mas, como veremos nos últimos vinte anos da sua produção, dá lugar a uma suspeição. Multiplicam-se os sinais de que a nostalgia do poético é o que mobiliza a escrita. O bucolismo torna-se um tema e um motivo. Como Fiama, Júdice poderia ter escrito “O bucolismo deixará de ser um canto”, com isso designando toda a poesia.
As dezenas e dezenas de poemas intitulados “Arte Poética”, “Poema” ou “Poética” são contínuas reflexões sobre o sentido da escrita em época de barbárie. A poesia como “conquista do efémero”, eis uma possível 3.ª fase que um livro como O Estado dos Campos (2003) inicia e se estende até 2023. O estado dos campos, como quem diz o estado do mundo, ou a poesia pensada como “guia de conceitos básicos” ou “fórmula de luz inexplicável” porque já só como recordação dum “concerto campestre” onde o poema fosse feito da matéria que o define – as palavras – o mundo pode suportar-se.