Ironia e melancolia: na morte de Nuno Júdice
Multifacetado, tinha uma vocação de polígrafo que o levou a escrever excelentes narrativas, algum teatro, numerosos ensaios ou maravilhosas traduções. Mas é a poesia que concentra o seu maior legado.
Não é fácil falar da morte de um amigo que conheci em finais da década de 80, inícios da de 90 – fará agora uns 35 anos. O Nuno era uma pessoa rara, com um brilhante sentido de humor – e deixa-nos a todos os que com ele convivemos memórias inapagáveis. Lembro-me do Nuno em festivais, em colóquios, em júris, mas também na sua casa da Mexilhoeira Grande, com a Manuela a seu lado, nos Verões algarvios em que nos últimos anos recuperava uma infância que nunca o abandonou. Usei o adjectivo “inapagáveis” sabendo demasiado bem que essas memórias irão um dia esvair-se connosco – e que só a poesia as ultrapassa.
No caso do Nuno Júdice, trata-se de um poeta multifacetado, com uma vocação de polígrafo que o levou a escrever excelentes narrativas, algum teatro, numerosos ensaios ou maravilhosas traduções – mas é na poesia que talvez se concentre o seu maior legado: ao publicar A Noção de Poema em 1972, estreou-se jovem, com 23 anos, e escreveu dezenas de livros que mostram um notável poder metafórico e reconstroem de modo muito criativo numerosas tradições literárias, num processo por vezes contaminado por uma ironia que vampiricamente se alimenta desses códigos e produz belíssimos resultados.
Em meados dos anos 90 – com Um Canto na Espessura do Tempo (1992) e Meditação sobre Ruínas (1994) – dá-se uma certa inflexão no seu percurso, deixando para trás a retórica luxuriante dos primeiros livros e partilhando com os leitores algumas experiências que tanto podem nascer de recordações da infância, de personagens históricas ou ficcionais que ganham vida no poema ou, enfim, provir de um quotidiano em que as mais variadas situações podem gerar um poema (por exemplo, os anúncios de casamentos pela Internet ou a figura de um estranho homem que fala sozinho na estação de caminho de ferro de Munique).
Um dos aspectos mais específicos do estilo de Nuno Júdice – sobretudo nos últimos 20 ou 25 anos e nos poemas mais longos – consiste numa arte muito sua de desenrolar um determinado tópico até o estender diante dos nossos olhos, ostentando todas as suas implicações descritivas, filosóficas ou emocionais, para depois o voltar a enrolar, mas fazendo-o já de outra maneira e atingindo no final de certos poemas uma dimensão conclusiva que lhes confere um teor quase aforístico.
A subtileza do seu olhar e a argúcia da sua melancolia são omnívoras, alimentando-se dos grandes temas da poesia de todos os tempos, mas também das mais ínfimas variações perceptivas com que captamos a realidade – por exemplo, as diferenças entre dois rostos, que podem ser tão subjectivas como a rápida reminiscência de um olhar ou tão fugazes como a eclosão do próprio amor. É essa a lição de um poema intitulado precisamente Melancolia:
“A diferença de um rosto para outro, por vezes/ não é nada; e só o que sobra de um olhar […]/ pode fazer com/ que os olhos se lembrem de outros olhos, ou/ uma cor súbita, na tarde de chuva, levante/ as nuvens do espírito, o inverno da alma,/ e traga o movimento em falso de uma luz de/ primavera, tão breve como as palavras que/ dizem o amor, e como o amor tão breve.”