Voto útil, voto inútil

Esta perceção de que os votos dos círculos mais pequenos em partidos fora da dicotomia do costume não valem nada é nociva para a democracia.

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Megafone P3: Voto útil, voto inútil Nuno Ferreira Santos
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Uma colega minha confidenciou-me que, pela primeira vez, considera fazer voto útil. Foi aí que me dei conta que faço voto útil desde os 18 anos. Útil, primeiro, porque todo o voto é útil à democracia. Mas também porque sei que, ao não votar num grande círculo eleitoral, qualquer voto que não seja nos dois principais partidos é um voto para o lixo.

Se não o é literalmente, é-o na cabeça do eleitor entendido. A perceção de que os votos dos círculos mais pequenos em partidos fora da dicotomia do costume não valem nada é nociva para a intenção de voto e para a democracia, que acaba por não refletir a verdadeira vontade popular.

Há vários problemas de desinformação relativamente à lei eleitoral portuguesa, mas o principal é que muito pouca gente está ciente de que não está, de facto, a votar no primeiro-ministro. Por exemplo, só descobri quando fui ver as listas do PS para o meu círculo que poderia votar pela atual ministra da Coesão Territorial. Ora, num país que já tem tão pouca literacia política, ainda ter uma lei eleitoral que descarta votos que não são nos dois grandes e que, assim, coage os eleitores a mudar o seu voto, parece fazer pouco sentido.

Desengane-se quem acha que o atual sistema é o mais vantajoso para os cidadãos portugueses. Estamos absurdamente mais conectados do que em 1975 e, em quase 50 anos, a nossa democracia não passou por uma única atualização significativa. O método de Hondt, que hoje nos serve, tem como pressuposto levar para a Assembleia os assuntos das regiões, mas, em boa verdade, se tal acontece é em quantidades tão ínfimas que o cidadão não sabe se quem o representa leva os seus interesses avante.

O princípio de “um cidadão, um voto” deveria ser fundamental em qualquer eleição democrática mas, em Portugal, não é totalmente aplicado, especialmente com um sistema que é, na prática, bipartidário a reinar para a esmagadora maioria dos eleitores que, ao votar num terceiro partido, fá-lo com a consciência de que o seu voto pode valer zero.

Uma reforma eleitoral em Portugal é necessária e é um tema que infelizmente fica perdido e não chega aos debates, a par da cultura, que nem a 1% de tempo de antena teve direito. Fala-se muito em reforma eleitoral, mas sempre em época de eleições, o que, diria eu, é ironicamente tarde.

Que interesse terá um cidadão do interior do país em ir votar se não se identificar com os dois maiores partidos do país? Não são de surpreender os níveis altíssimos de abstenção e menos ainda deveria surpreender o facto de os eleitores não se interessarem pelos assuntos da Assembleia.

Perguntem ao cidadão dos círculos mais pequenos quem o representa na Assembleia. Quem fala por Coimbra? Quem fala por Faro? Quem fala pelos 600 mil cidadãos cujos votos não se refletem na constituição da Assembleia da República? Podem explicar, claro, que apesar do seu voto não eleger ninguém, expressa a sua opinião. Importará a opinião para alguma coisa se não for ouvida ou representada? São 12% dos votos válidos, tornados inúteis, num país com mais de 50% de abstenção. As peças não parecem encaixar.

É urgente uma reforma eleitoral, repensar o país à luz das suas reais dimensões, reavivar a política além de Lisboa e ressuscitar as inúmeras propostas de reforma eleitoral e respetivo debate. Claro que, até lá, é igualmente imperativo informarem-se de quem constitui as listas dos vossos respetivos círculos eleitorais, para saberem mesmo quem vos vai representar. Em último caso, façam voto inútil — para vocês ou para o país, a escolha é vossa —, mas não deixem de votar.

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