Não deixe que a história da sua família decida a da família que está a construir!
Não enfrentar os traumas da nossa infância pode levar-nos a viver com o medo constante de repetir as experiências dolorosas que vivenciamos.
A relação entre pais e filhos é profundamente influenciada pelas experiências de infância dos pais e pelos traumas familiares que enfrentaram. Estudos sugerem que as experiências vivenciadas na infância têm um impacto significativo na forma como os pais criam e se relacionam com os seus próprios filhos.
Se na sua infância viveu num ambiente disfuncional o mais provável é que essas experiências estejam dentro de si na vida adulta, e a forma que temos de as observar é na nossa relação com os nossos filhos em particular em momentos de stress, o que, diga-se de passagem, são muitos durante o crescimento dos nossos filhos.
Com maior ou menor consciência todos nós já nos dissemos a nós mesmos “quando for mãe/pai não vou fazer o que os meus pais me fizeram”, no entanto, muitos são os momentos em que nos vemos a verbalizar exatamente as mesmas frases que ouvimos e a mimetizar comportamentos que nos fizeram sofrer.
Mas porquê, porque é que querendo tão vincadamente fazer diferente nos colocamos num lugar em que a repetição parece inevitável? De facto, o legado do trauma pode manifestar-se de várias formas, afetando a capacidade dos pais de criar um ambiente seguro e saudável para os seus filhos crescerem.
Neste artigo, exploramos como o trauma infantil molda a relação de parentalidade de forma inconsciente e as estratégias para lidar com os seus efeitos. A ideia de uma infância feliz que todos gostaríamos de recordar, quase nunca corresponde ao real. Na verdade, todos nós de forma mais leve ou severa passamos por eventos traumáticos ou relações mais ou menos disfuncionais na nossa família, desde eventos traumáticos mais leves, negligencia emocional quando recordamos que as nossas necessidades emocionais não eram de todo tidas em conta, até mais severas como, por exemplo, ter sofrido violência física ou ter convivido com um pai alcoólico ou uma mãe deprimida.
Sobrevivemos, mas esses padrões familiares disfuncionais tendem muitas vezes a ser reproduzidos na nossa própria parentalidade. Podemos “com a melhor das intenções” replicar comportamentos abusivos, negligentes ou desvinculados que testemunhamos nas nossas próprias vivências familiares, mesmo que desejemos fazer exatamente o oposto.
Uma vez que estas experiências passadas deixam marcas, como, por exemplo, os pais sentirem dificuldade em exprimir afeto, confiança e intimidade, deixando os filhos em busca de conexões emocionais que não são plenamente atendidas. Assim o trauma pode interferir na capacidade dos pais estabelecerem vínculos emocionais seguros e saudáveis com os seus filhos.
Sabemos também que adultos que experimentaram trauma na infância muitas vezes têm dificuldade em regular as suas próprias emoções, o que pode afetar a sua capacidade de responder de forma adequada às necessidades emocionais dos seus filhos. Podem, por exemplo, ter reações exageradas ou se mostrarem insensíveis a situações desafiadoras, tornando o ambiente familiar imprevisível e instável para as crianças.
Imagine o caso de um pai que experimentou abuso emocional durante a sua infância. Devido ao trauma passado, pode ter aprendido a reprimir as suas emoções como uma forma de autopreservação, resultando em dificuldades para demonstrar amor de maneira aberta e positiva. Esse padrão de repressão emocional, enraizado no trauma, pode influenciar a dinâmica familiar, deixando os filhos em busca de validação emocional que não é plenamente oferecida.
Assim compreendemos que não enfrentar os traumas da nossa infância pode levar-nos a viver com o medo constante de repetir as experiências dolorosas que vivenciamos. Esse medo pode levar os pais a tomarem atitudes superprotetoras ou a evitarem situações que consideram arriscadas para os seus filhos, limitando o seu desenvolvimento saudável.
Isto porque efetivamente existe uma predisposição para aquilo a que chamamos transmissão intergeracional dos padrões de relação traumáticos até que alguma das gerações o enfrente e cure. Por exemplo, se uma mãe cresceu num ambiente de negligência emocional, é possível que reproduza essa falta de suporte emocional com os seus próprios filhos, perpetuando assim os padrões traumáticos ao longo das gerações.
Enquanto este processo de cura não for concretizado, o trauma é transmitido de uma geração para outra, criando um ciclo de dor e sofrimento que persiste ao longo do tempo. Os pais, que não resolveram o seu próprio trauma, podem inadvertidamente transmiti-lo aos seus filhos perpetuando padrões de disfunção familiar.
Mas os pais têm também o poder de interromper o ciclo do trauma, buscando ajuda e comprometendo-se com a cura pessoal. Ao enfrentar o seu próprio passado e aprendendo a lidar com o trauma de forma saudável, os pais podem criar um ambiente familiar de amor, segurança e resiliência para si e para seus filhos.
Lidar com o legado do trauma na relação de parentalidade requer coragem, autoconhecimento e, muitas vezes, ajuda profissional. Terapia individual ou familiar pode ajudar os pais a explorar e processar as suas experiências passadas, a desenvolver competências de regulação emocional e a aprender estratégias eficazes de parentalidade.
Ao confrontar a dor enraizada da nossa infância e compreender como ela continua a influenciar as nossas experiências, emoções e relacionamentos na idade adulta, iniciamos o processo de processamento do trauma. Aprofundando a nossa compreensão do trauma e da nossa própria infância, tornámo-nos capazes de estabelecer relações mais enriquecedoras com os nossos filhos.
Assim, é fundamental começar por observar atentamente as nossas reações "instintivas" em diversas situações enquanto mãe ou pai. Essas refletem o tipo de progenitor que aspiramos ser? A chave reside na promoção da consciência desses padrões profundamente enraizados, compreendendo até que ponto o comportamento dos nossos filhos pode desencadear inadvertidamente estados emocionais que nos são familiarmente inconscientes.
Trabalhar a nossa infância e admitir que nem tudo correu bem, não significa culpar os nossos pais. Eles, tal como nós, são ou foram humanos com falhas e com a sua própria infância por digerir. Explorar o nosso passado e compreender o que puder sobre os nossos traumas de infância ajuda-nos a revelar e compreender as experiências positivas e negativas das nossas vidas e a entender como chegamos até aqui. Com este trabalho deixamos para trás características parentais que não gostaríamos de repetir.
Em suma, reconhecer e abordar o legado do trauma na relação de parentalidade é fundamental para promover o bem-estar e a saúde emocional de toda a família. Ao enfrentar o passado com coragem e compaixão, os pais podem construir um futuro mais brilhante e fortalecer os laços de amor e confiança com os seus filhos.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990