Cláusula de rescisão médica

O PS é incapaz de criar condições para reter os médicos no SNS. Então quer obrigar-nos, por força de lei, a ficar.

Foto
Nelson Garrido
Ouça este artigo
00:00
04:20

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

O doente que está à minha frente está a ter um dia pior do que o meu. É uma lei natural.

Repito-a vezes sem conta. Começo quando chego ao hospital e olho para o capim em que se transformou o jardim. Depois vou continuando. Quando rompo os collants porque me sentei outra vez na cadeira que está rasgada. O sofá também está, mas os enfermeiros taparam a espuma com adesivo. Benditos. Mais uma vez, quando o rato cuja substituição pedimos há mais de um mês deixa de viver a duas frases de concluir a nota de alta. Vamos lá procurar outro que funcione.

À hora em que caio na tentação de espreitar as redes e me inteiro da intenção do Partido Socialista de introduzir um tempo de dedicação ao SNS após a especialização e um quadro de compensações "pelo investimento público na sua formação", para quem decidir emigrar ou trabalhar no privado, o dia já vai demasiado longo para chegar a ser mau por causa disso. Mas não deixo de sentir um nó no estômago. O fundamento destas propostas é tão esburacado como a minha pobre cadeira. E igualmente desconfortável.

O PS é incapaz de criar condições para reter os médicos no SNS, mesmo antes da especialidade. De recordar as 406 vagas deixadas livres por 488 candidatos que, no último concurso, preferiram continuar sem ela. Então quer obrigar-nos, por força de lei, a ficar. Por necessidade ou patriotismo ou qualquer outra justificação que venham a tentar compor. Só a nós. Não faltam juízes (a justiça corre célere, como sabemos), funcionários das finanças (um atendimento supersónico!) ou professores (espero que esta vos faça rir) nem deles se deve exigir o mesmo serviço à causa pública.

Ainda que não faltassem, esta ideia mirabolante gera dois incómodos, um legal e outro social.

O legal é o atropelo dos princípios da igualdade e livre escolha. Da legitimidade que tem o querer trabalhar onde a proposta for mais atrativa. Ou, em linguagem de gente, onde formos mais felizes. Parecendo que não, também estamos cá para isso.

O social custa-me mais. Porque assumir que o doente está pior tem outro nome. Chama-se vocação e a sua prática é uma coisa que não pode nem deve ser remunerada. Primeiro, porque é um amor e o amor é dado. Segundo, porque a pagar-se, não teria preço. Foi a vocação que fez com que, em março de 2020, um dos meus colegas resolvesse, desprotegido, arriscar uma entubação para evitar atempadamente que um dia pior do que o dele se transformasse numa paragem cardiorrespiratória. Não cheguei a saber se o dia dele terá chegado a melhorar, mas o do colega terminou em insuficiência respiratória, entubação, circulação extracorporal e muita fisioterapia para restabelecer forças que permitissem voltar a fazer coisas como comer autonomamente. Era à vocação que se batia palmas à janela. Para o resto, para a complexidade técnica do que fazemos, há, ou deveria haver, um salário correspondente. Quem fica no SNS continua a fazê-lo por amor. Mas o amor que prende termina inevitavelmente em ressentimento.

Esse ressentimento leva-me à outra metade desta proposta. O tal quadro de compensações do qual se subentende que, de todos os graus académicos que as academias públicas oferecem, apenas os médicos representamos um sacrifício para os contribuintes. Aqui, novamente, o problema da igualdade. Ou será esse "investimento público" o internato médico? Tentei, sem sucesso, encontrar outra fonte de despesa além do salário estipulado no nosso contrato de trabalho. Feitas as contas, somos um terço de toda a força de trabalho médico do SNS. Encontrei, isso sim, incontáveis horas extraordinárias por pagar, um salário muito abaixo do dos nossos congéneres europeus e condições de trabalho que se caracterizam, precisamente, pela profunda falta de investimento.

É a vocação que vai colocando adesivo na espuma a descoberto do SNS. Estas medidas reforçam o sentimento de desvalorização da profissão médica que se mantém há várias legislaturas. Calculando que quem nos venha a governar poderá não ser muito permeável a sentimentos, deixo uma última reflexão. A qualidade da formação médica pública portuguesa não levanta questões. Não faltarão serviços de saúde estrangeiros ou grupos privados nacionais que paguem com um sorriso nos lábios a "cláusula de rescisão" que Pedro Nuno Santos desejar.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários