Museu Nacional de Arte Contemporânea: um museu fantasma?
Tenho o maior gosto em elucidar a colunista Maria João Marques quanto aos diversos assuntos em que se equivoca, da colecção e políticas expositivas às questões do edifício.
Em recente artigo de opinião, a economista Maria João Marques — à qual agradeço o interesse — toma como mote o Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), chamando-lhe fantasma e acusando-o de manter a colecção (4500 obras) encaixotada e armazenada.
É certo que a opinião não tem a gravitas da teoria; é mais uma percepção da realidade, mais ou menos fundamentada, conforme a atenção que se dá ao real. Ainda assim, convém ter algumas bases concretas. É nesse sentido que tenho o maior gosto em elucidar a colunista quanto aos diversos assuntos em que se equivoca, da colecção e políticas expositivas às questões do edifício.
Começo pela colecção.
A colecção do MNAC não é de 1850 a 1950, mas de 1850 à actualidade e o seu número há muito ultrapassou as 4500 obras, estando bastante mais perto das cinco mil, valor brevemente ultrapassado por novas doações de que, a seu tempo, daremos nota. Apesar das lacunas existentes (e em relação às quais a colecção de Mário Teixeira da Silva — de que fizemos significativa exposição, sinalizando o prometido legado — iria constituir um incontornável contributo), a abrangência da colecção torna impossível, no exíguo espaço existente, mostrar um conjunto relevante em número e programa. Por isso mesmo, desde 1996 (e não 2016) que a colecção vem sendo exposta por núcleos.
Enquanto isso, as restantes obras não estão nem encaixotadas nem em armazéns. Nos museus, não há armazéns: há reservas. As reservas dos museus têm condições especiais, que variam consoante a tipologia das obras aí conservadas, de modo a garantir a sua perenidade. Essas condições não passam por caixotes, mas por outro tipo de mobiliário, mais sofisticado — a bem das obras — e por condições de salubridade, determinadas por conhecimento científico nas diversas áreas. Terei o maior gosto em aprofundar o esclarecimento, se tiver interesse.
Segundo equívoco: das obras do MNAC não fazem parte as (supostamente desaparecidas) 94 obras da então Secretaria de Estado da Cultura (SEC). A proposta de integração da colecção SEC no MNAC, em 2015 (integração que acabou por não acontecer, como é do conhecimento público), coincidiu com a cedência ao museu de dois edifícios contíguos, que sofreram a adaptação possível com o orçamento então disponível. Foi em parte do antigo Governo Civil que se expôs uma selecção da colecção SEC.
Foi isso que a Maria João Marques viu, em 2015, e não a colecção do museu. O encerramento do MNAC em 2016, para estabelecer a ligação entre o edifício Wilmotte e os outros dois corpos anexos não implicou, por isso, a retirada da suposta exposição permanente, algo que deixara de existir em 1996 (vinte anos antes).
Volto às cerca de cinco mil obras que o museu tem à sua guarda, e à exposição de longa duração. Hoje em dia usa-se pouco o conceito de “exposição permanente”. Escassos museus no mundo seguem ainda essa proposta de percurso com parcas alterações. Porquê? Porque, em geral, cerca de 95% das colecções, em todo o mundo, estão em reserva e só os restantes 5% estão expostos, devido a constrangimentos vários, desde o espaço expositivo disponível, ao contínuo crescimento das colecções, à pertinência do discurso sobre elas elaborado, até razões de conservação preventiva (obras sobre papel, como desenho, aguarela, gravura ou fotografia — ou até livros, cartazes, etc. — não podem ter tempos longos de exposição), incluindo novas investigações sobre obras, autores — e autoras! —, etc., que vão propiciando relações e descobertas nas colecções, assim nutrindo o conhecimento de todos, através de novos projectos de exposição e divulgação.
Ora, voltando aos nossos 5% de obras, isso significaria expor, grosso modo, 250 obras. Qual é o problema? Por um lado, não temos espaço para expor 250 obras. Por outro, isso significaria deixar as cerca de 4750 restantes em eterno repouso, ou silêncio. Não é isso que fazemos nos museus. É para demonstrar a relevância da colecção que temos vindo a mostrá-la por núcleos. Passo a dar exemplos concretos.
Começo em 2018, já sob a minha direcção. De Abril de 2018 a Setembro de 2019 apresentámos uma forma mais “canónica” da colecção, com a exposição Arte portuguesa. Razões e emoções, com obras de meados do século XIX até à década de 80 do século XX. Assinalámos também o Bicentenário do nascimento de Tomás da Anunciação (1818-2018). Em 2020, mostrámos Biografia do traço. Colecção de desenho (1836-1920) na colecção do MNAC, dezenas de trabalhos que, em mais de 100 anos de museu, nunca tinham sido expostos, e produzimos um catálogo que ilustra a investigação realizada pelo museu em torno desse conjunto de obras. No mesmo ano, retirámos das reservas Otelo e Desdémona, de Muñoz Degrain (actualmente em exposição no MNAA), que também não era mostrado desde 1913, e cuja exposição Otelo e Desdémona. Nos palcos da paixão potenciou um ciclo de conversas sobre o orientalismo na arte. Ainda em 2020, abrimos Dissonâncias. Colecção MNAC: Aquisições e doações 2010-2020, dando a conhecer ao público uma selecção das mais recentes entradas na colecção.
Em 2021, apresentámos Dilema de ser e parecer. O retrato na pintura, fotografia e escultura (1850-1916). Em torno dessa exposição, encerrada pelo segundo confinamento, fizemos um ciclo de conferências online, com convidados académicos nacionais e internacionais. Prosseguimos com Olhares modernos. O retrato em pintura, escultura, desenho (1910-1950) na colecção do MNAC. Em 2022, foi a vez de Paisagens povoadas. Narrativas da colecção do MNAC (1850-1930). Os cortes orçamentais decorrentes da pandemia impediram a realização de catálogos destas exposições. Mas elas existiram, foram divulgadas e bastante visitadas.
Em 2023, Veloso Salgado. De Lisboa a Wissant mostrou parte significativa do legado deste artista que, em 2016, foi deixado ao MNAC, permitindo-nos aprofundar o conhecimento das relações internacionais deste pintor português com a Bretanha. Aliás, a exposição integrou a programação da Temporada Portugal-França, com grande proveito de divulgação internacional do pintor português, como testemunha o seu bem documentado catálogo. Percebo, pelo seu testemunho, que Maria João Marques a visitou. Pena não se ter dado conta de que era uma boa oportunidade para conhecer uma parte da colecção que tão cedo não poderemos voltar a mostrar com esta complexidade.
Para que não restem dúvidas, deixe-me dar-lhe alguns números. Estamos a falar, por alto, em apresentação pública, nos últimos seis anos, com vastos programas pedagógicos complementares (visitas, conferências, palestras, cursos, oficinas), de cerca de 600 obras da colecção (ou seja, cerca de 12% da colecção, em vez dos menos de 5% que o espaço actual permitiria numa exposição de longa duração). À parte as exposições de artistas contemporâneos que fomos organizando, nunca descurámos os mais antigos. Por isso, consequência da nossa constante investigação e divulgação, o MNAC tem sido crescentemente procurado por museus internacionais, para empréstimos de obras da colecção.
Isso também acontece em território nacional. Temos levado projectos curatoriais em itinerância, caso das exposições Registos de luz. Pintura impressionista de Sousa Lopes e a colecção do MNAC (1900-1950) e Olhares Modernos, patentes no Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso. Da última foi elaborado, no âmbito desta parceria, um catálogo com investigação do MNAC.
Há ainda a considerar exposições que, não se tendo centrado exclusivamente em obras da colecção, permitiram investigação e divulgação sobre a obra de artistas menos estudados da colecção. Neste caso, tenho de referir Carlos Relvas (1838-1894) – Vistas inéditas de Portugal. A fotografia nos salões europeus (2018); Sarah Affonso. Os dias das pequenas coisas, numa inédita parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian (2019); Francis Smith. Em busca do Tempo Perdido (2022); e Jorge Barradas. No Jardim da Europa (2023), cuja investigação do museu, em colaboração com a academia (nos últimos dois casos, possível graças ao mecenato da Fundação Millennium bcp) produziu publicações de referência, premiadas, e facilmente encontradas nas principais livrarias do país e na renovada loja do museu.
Não poderia terminar este meu esclarecimento, sem abordar as obras do edifício. Como refere Maria João Marques, passou um ano desde que o ministro da Cultura anunciou a ampliação do MNAC. Surpreende-a que os arquitectos que desejam apresentar projectos ao concurso internacional tenham vindo ao museu apenas um ano depois. Ora, nesse meio tempo, o museu desenvolveu (em poucas semanas) o pré-programa para a ampliação. Após os trâmites normais, este foi enviado pela tutela à Ordem dos Arquitectos que estabeleceu os contornos legais e técnicos necessários à apresentação de um concurso internacional. Esse concurso tornou-se público em Dezembro de 2023. Em Janeiro de 2024, os interessados visitaram o espaço. Terão agora até ao final de Março deste ano para apresentar propostas. Depois, haverá ainda o processo de selecção até se chegar ao vencedor, e ao momento de concretização, que implicará demolições e novas construções. Enquanto isso, estamos com intervenções no âmbito do PRR. E continuamos a produzir conhecimento.
Fazer leva tempo. Como diz “o povo”, Roma e Pavia não se fizeram num dia. Entretanto, no Outono deste ano, teremos nova visão da colecção, dentro do espaço possível. Está, desde já, convidada. Terei muito gosto em lhe fazer uma visita orientada. Quanto a fantasmas, o único que se diz andar por cá é o do Columbano, mas confesso que ainda não dei por ele.