Reforma em curso: Cruz Vermelha reavalia apoios e fecha lares em edifícios velhos
Cruz Vermelha corre risco de falência se não tiver gestão mais rigorosa. António Saraiva enaltece “abnegação”, mas lamenta falta acumulada de “profissionalismo”
Pouco tempo depois de ter deixado a presidência da CIP — Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva foi desafiado pelo Governo de António Costa para presidir à Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), uma instituição centenária e sem fins lucrativos, que é, pela primeira vez, entregue a um gestor. Isso significa que está em curso uma reforma da instituição que poderá durar mais do que quatro anos, ou seja, o actual mandato de Saraiva. Para já, uma coisa é certa: há valências que vão deixar de existir porque é preciso concentrar recursos, lares em edifícios decrépitos como os de Beja vão encerrar, o "voluntarismo" vai ter de passar a andar de braço dado com o "profissionalismo". António Saraiva garante, porém, em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, que isso não significa que as pessoas que hoje estão a ser ajudadas vão ser abandonadas, uma vez que a CVP não recuará em nenhuma resposta sem assegurar reencaminhamento dos utentes.
Em Julho, tornou-se presidente da Cruz Vermelha. Tomou posse, estabeleceu várias metas. De lá para cá, o que é que conseguiu mudar na instituição?
Em seis meses, não é possível transformar assim tanto uma entidade que tem 159 delegações, 2800 colaboradores e 1700 viaturas. Um porta-aviões não muda de rota em seis meses. Aquilo que fizemos neste período foi constatar a realidade da entidade, os vários serviços sociais que vem prestando à população e definir um programa de acção para alterarmos algumas tipologias, garantirmos sustentabilidade, desenhar os novos estatutos. Por isso, [o que fizemos foi] mudar os estatutos, dar sustentabilidade à organização e fazer uma reestruturação dos serviços. Temos serviços que são rentáveis e há outros onde isso não acontece. Sendo a Cruz Vermelha uma entidade não governamental, sem fins lucrativos, privada, não pode ter prejuízos acumulados. E daí este plano de revisão, esta verificação do que devem ser os nossos serviços.
Quer dar uma volta na instituição. Acha que a CVP tem demasiadas valências, que devia focar-se em algumas e deixar cair outras?
Devemos valorizar umas, dar-lhes maior alicerce e, eventualmente, abandonarmos outras. A Cruz Vermelha tem serviço social, desde emergência, o apoio à vítima, refugiados, sem-abrigo, os lares, as creches, os infantários, enfim, um conjunto de valências 24 horas/365 dias por ano. O Estado, lamentavelmente, não cobre todos os custos. Temos um problema de sustentabilidade da tesouraria. Estamos num período em que têm vindo a duplicar os pedidos de ajuda. Em 2022, tivemos o dobro dos pedidos de ajuda que tivemos em 2021. Já em 2023 duplicámos praticamente o que tínhamos em 2022. Este aumento dos pedidos de ajuda, ao mesmo tempo que há uma redução dos donativos, é uma equação difícil, cujo resultado tem de ser melhorado.
Quando fala em alterar algumas tipologias, reestruturar serviços e ver o que é rentável e o que é que não é, pode concretizar quais são as áreas em que possivelmente a Cruz Vermelha deve apostar mais e quais aquelas em que pode recuar?
Não é fácil responder a essa pergunta porque, das 159 delegações que integram a Cruz Vermelha, nem todas prestam todas as valências. Nós cobrimos o território nacional na sua totalidade e cada delegação tem um conjunto de valências que vem prestando à população. Uns têm lares e creches, outros têm infantários e apoio à vítima, outros têm [apoio a] sem-abrigo. Há a recepção aos refugiados. É claro que não abandonamos ninguém, não deixaremos de auxiliar ninguém.
Mas faz sentido a Cruz Vermelha ter essas valências todas? É sustentável?
A função humanitária é uma das prioridades. Esta abnegação, este humanismo caracteriza toda a rede, não apenas nacional, mas a rede internacional. O aumento de pedidos da população portuguesa, ano após ano, leva a que não possamos abandonar aqueles que precisam de ajuda. Então e o que fazer? Vamos manter todas as valências? Eventualmente, não. Eventualmente, teremos de largar algumas delas. Mas o Governo central delegou nos municípios muito destas valências sociais e as câmaras não têm ainda esta missão incorporada e, por isso, pedem auxílio à Cruz Vermelha, à Cáritas, às Misericórdias. É uma avaliação que temos de fazer, ver que organizações estão também no terreno e ver quem é que está mais habilitado. Estamos a verificar aquelas [áreas] onde deveremos deixar de prestar esse apoio social, não deixando ninguém para trás.
Que áreas tem em mente?
Estamos a avaliar algumas das ERPI [Estrutura Residencial para Pessoas Idosas] e temos a questão dos refugiados. Dou-lhe o exemplo de Beja, onde temos dois lares e onde, pelas condições que os edifícios têm, é quase desumano manter aqueles 60 utentes naquelas condições. As condições dos dois edifícios já não respondem às necessidades que hoje são obrigatórias.
Em 2022, antes de estar à frente da instituição, a CVP chegou a ter resultados positivos de 7 milhões.
A CVP tem um orçamento anual de cerca de 90 milhões de euros, mas temos 40 milhões em dívida. Há vários apoios financeiros que temos solicitado, investimentos que têm sido feitos em equipamentos, com esta subida de juros temos algumas situações em maior dificuldade. Nesse ano de 2022, os testes covid que a CVP fez em largo número trouxeram um conjunto de receitas extraordinárias. Os números hoje já não são assim. No somatório das 159 delegações, temos receitas em caixa na ordem dos 50 milhões, mas, por outro lado, devemos 40 milhões, o que é uma coisa aparentemente absurda. É esta reflexão que a minha direcção está a fazer precisamente para não cairmos em ruptura de tesouraria, porque é assim que as organizações vão à falência.
Estão em pré-ruptura?
Não, mas com a diminuição de donativos, com a diminuição de receitas, estamos igualmente a desenvolver um conjunto de metodologias para ir junto das empresas, que estão obrigadas [a ter políticas de responsabilidade social] pelos critérios dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, contratualizar um conjunto de donativos. Estamos também a desenvolver uma nova metodologia para o Cartão Cruz Vermelha, integrando os serviços do hospital, mas dando ao cartão um conjunto de outras valências.
Como foi possível a Cruz Vermelha ter chegado a este ponto?
Foi muito boa vontade, voluntarismo. Ninguém nas 159 delegações é remunerado. Mas há muita iliteracia, há muita falta de conhecimento de gestão. Quando uma câmara oferece um terreno para a construção de um lar, depois há os custos de edificação de todos os equipamentos. Tem de haver um plano de negócios. Há que fazer contas. Há muita abnegação e humanismo, mas em alguns casos pouco profissionalismo.
E o hospital?
Aquilo que me pergunta é se faz sentido a Cruz Vermelha manter uma marca, uma insígnia naquele equipamento? Sim, a Cruz Vermelha é, de facto, uma marca que goza de excelente notoriedade, excelente efeito reputacional. Está-se a modernizar, a incorporar novas valências e a reabilitar o edifício. A gestão hospitalar é da responsabilidade quer da Santa Casa quer da Parpública. Há duas direcções, no tempo do presidente Francisco George, deixámos de ser os donos e passámos apenas a ser o senhorio do hospital. Deixámos de ter a gestão.
Há pouco, falava no aumento do número de pedidos de ajuda. Isso também se verifica com pessoas em situação de sem abrigo?
Também. Há duas valências em que temos vindo a constatar uma enorme subida: os sem-abrigo e a violência doméstica, onde temos teleassistência.
Mudou alguma coisa no perfil das pessoas que pedem ajuda? Há mais pedidos de famílias de classe média, nomeadamente, de ajuda alimentar ou para pagar a renda?
Tínhamos pedidos de famílias mais carenciadas, de classe baixa, e sentimos algum aumento da chamada classe média. Há uma pobreza envergonhada. Há um pedido de ajuda crescente, não apenas de tipologias mais carenciadas, mas também daquelas que até há pouco tempo viviam equilibradas. Sim, temos vindo a sentir esse crescimento.
Quantas pessoas é que ajudam? Qual é o universo?
Temos no todo, no social, 157 mil pessoas. Temos na área da saúde 99 mil pessoas. Temos em saúde mental, área que está a crescer também os pedidos de ajuda, 1400 pessoas. Temos em cuidados continuados 400 pessoas. Apoio alimentar perto 50 mil. Apoiamos pessoas idosas em solidão, na ordem das 50 mil pessoas.
A crise política congelou ou agravou a situação da Cruz Vermelha Portuguesa?
Pegando na sua expressão, eu diria congelou, porque este hiato governativo leva a que os interlocutores em funções já não tomem decisões, a não ser aquelas que são mais urgentes. Isso penaliza todas as entidades que se relacionam com o Estado.
Estamos em período de pré-campanha eleitoral. Como é que tem acompanhado este conjunto de propostas que estão a ser apresentadas pelos partidos? Estamos perante um leilão eleitoral?
Estamos, de facto, perante um leilão eleitoral, em que cada partido tenta dar mais do que o outro. Lamentavelmente, cada partido está, nesta campanha, mais a olhar para o retrovisor do que para o pára-brisas. Acho que a população portuguesa gostaria mais que as propostas fossem sobre o que cada partido tem para oferecer o país, olhando para o pára-brisas e não para o retrovisor, de quem fez mal, quem tem culpas, quem não fez isto ou aquilo. Alguns partidos apresentam medidas só para saber bem ouvi-las, mas depois não têm sustentabilidade.