No passado dia 29 de janeiro, o Presidente da República (PR) vetou o projeto de lei que viria a estabelecer o quadro jurídico para a emissão das medidas administrativas a adotar pelas escolas para a implementação da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa.
Em traços largos, o que este projeto de lei propunha – a quem interessar ler a proposta com seriedade logo perceberá que não se trata de uma lei sobre casas de banho neutras — é que, de modo a garantir o exercício do direito das crianças e jovens à autodeterminação da identidade e expressão de género e do direito à proteção das suas características sexuais, as escolas passassem a adotar: i) medidas de prevenção e de promoção da não discriminação, ii) mecanismos de deteção e de intervenção sobre situações de risco, iii) condições para uma proteção adequada da identidade e expressão de género e das características sexuais de crianças e jovens e iv) formação dirigida a docentes e demais profissionais (artigo 3.º), desenvolvendo, subsequentemente, essas mesmas medidas e emendando, assim, duas normas do artigo 12.º da referida lei que haviam sido declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional (que, de modo simplificado, considerou que caberia à Assembleia da República a implementação de tais medidas e não ao Governo, como constava da solução anterior).
O PR considerou que o decreto pecava pela “quase total ausência” do papel dos pais, representantes legais ou encarregados de educação na implementação do regime legal, tendo em conta as idades díspares das crianças e adolescentes, assim como a sua “capacidade psicossociológica”. A argumentação foi semelhante quando, em 2018, o PR inviabilizou a menores de 16 e 17 anos a possibilidade de autodeterminarem a sua identidade de género, propondo que se exigisse um relatório médico que ajudasse a “consolidar a aludida escolha, sem a pré-determinar”. Um excesso de zelo que apenas serviu para protelar a (sobre)vivência destes jovens em conformidade com a sua identidade de género, quando, por exemplo, na vizinha Espanha, os mesmos menores autodeclaram a sua identidade de género, sem intervenção de terceiros.
Ao considerar que os pais poderiam “introduzir realismo” na matéria, o PR continua a menosprezar o entendimento que crianças e jovens têm de si, quando se sabe que a identidade de género se manifesta em idades precoces. E, de todo o modo, o decreto sempre previa a participação e a consulta daquelas figuras em diferentes normas, nomeadamente exigindo que a sua vontade expressa fosse respeitada aquando da aplicação dos procedimentos administrativos que acautelam as “transições sociais” de identidade e expressão de género das filhas e dos filhos (artigo 6.º).
Com este veto, o PR adia o exercício de direitos humanos, continuando a ignorar as diretrizes internacionais na matéria que demonstram a relevância de incluir, nas escolas, uma “educação sexual abrangente que inclua a diversidade sexual e de género, de modo a reduzir significativamente os riscos de saúde física e psicológica para jovens LGBT[I] e de género diverso”.
Como explica o Comité de Ministros do Conselho da Europa e organismos das Nações Unidas, tal passa por, por um lado, disponibilizar informação objetiva sobre identidade de género (e orientação sexual), no currículo da escola e nos materiais educacionais, e pela revisão de metodologias e abordagens de ensino e, por outro lado, garantir a formação de toda a comunidade escolar e a criação de um ambiente escolar inclusivo, seguro, livre de violência, de constrangimentos (na escolha do vestuário, no acesso às casas de banho, na participação nas atividades desportivas), de bullying, de exclusão e de outras formas de discriminação.
O PR também parece esquecer-se que é a própria Constituição (artigo 26.º) que protege o direito à identidade pessoal, isto é, o direito de cada pessoa viver em concordância consigo própria, e o direito ao desenvolvimento da personalidade que protege o direito à autoafirmação e à autodeterminação, como nos ensina a doutrina constitucional; que é a própria Constituição (artigo 73.º, n.º 2) que impõe o dever estadual de promoção das “condições para que a educação contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade”.
Este era o trajeto que o projeto de lei seguia e que, de resto, se sustinha em ideais já implantados, de modo mais ou menos explícito, no plano legislativo vigente. Veja-se o Estatuto do Aluno e Ética Escolar, o qual exige que o “o aluno tem direito a ser tratado com respeito e correção por qualquer membro da comunidade educativa, não podendo, em caso algum, ser discriminado em razão (...) da identidade de género”, ou a Lei de Bases do Sistema Educativo que exige que o sistema educativo deve “contribuir para a realização do educando, através do pleno desenvolvimento da personalidade (...)”, assegurando o “direito à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projetos individuais da existência”.
A importância de proteger crianças e adolescentes, neste e noutros contextos, é inegável e o sistema de ensino revela-se essencial na modelação da estrutura individual e coletiva. É precisamente por estarem em causa “realidades tão simples, mas tão significativas”, para o seu dia a dia, como referia o PR, que estas medidas são essenciais para salvar vidas.
Contudo, a mensagem presidencial dá a entender que o legislador tem de se esforçar mais para conquistar as pessoas, as famílias e as escolas “para a sua causa”. Foi assim que o PR terminou a sua mensagem, afastando-se, ele próprio, de uma causa que é de todas as pessoas, de uma causa de direitos humanos.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990