O nosso SNS, amanhã

A covid-19 demonstrou que é possível, de uma forma rápida, organizar e reequipar o SNS para fazer face às necessidades, desde que haja um estímulo forte, uma liderança e vontade política.

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Praticamente todos os sistemas de saúde dos países mais desenvolvidos enfrentam atualmente problemas sérios de desenho e de governança. O SNS português não é certamente uma exceção. Alguns destes problemas são a diminuição da qualidade da segurança dos doentes, o foco excessivo nos cuidados agudos em detrimento da prevenção e da saúde das populações, a pouca centralidade nas pessoas e a consequente falta de empatia na prestação de cuidados, os custos cada vez mais insustentáveis para todos e a dificuldade em se criarem métricas para garantir uma gestão baseada em resultados e em valor importantes para os doentes.

A próxima década assistirá certamente a transformações significativas sobre a forma como os sistemas de saúde são desenhados. Recentemente, a covid-19 demonstrou que é possível, de uma forma rápida, organizar e reequipar o SNS para fazer face às necessidades, desde que haja um estímulo forte, uma liderança e vontade política.

Como será o nosso SNS nos próximos dez anos?

Muito brevemente, e de uma forma não exaustiva, proponho que percorramos algumas áreas que necessitam de transformações significativas. De entre elas, destacaria a organização e a sustentabilidade do SNS, o sistema de pagamentos, o papel dos profissionais de saúde e os novos parceiros na prestação de cuidados.

Apesar dos vários alertas emitidos nos últimos anos, o SNS continua a ter uma organização fragmentada em silos, com a natural consequência da falta de coordenação e integração dos cuidados. O novo SNS será desenhado com base nos cuidados primários e da comunidade, robustos e acessíveis, em que equipas multiprofissionais e transdisciplinares coordenam todos os assuntos relacionados com a prestação de cuidados de saúde. A maior parte dos cuidados tenderá a ser prestada fora dos hospitais e mais próximo das comunidades. Daí ser necessário e urgente retomarmos o conceito de centro de saúde de proximidade.

Os hospitais são, atualmente, os responsáveis por uma grande fatia do financiamento dos cuidados de saúde. Em dez anos, com a transferência da maior parte dos cuidados dos hospitais para a comunidade e para a casa dos doentes, haverá naturalmente uma tendência para fazer incidir a atividade, sempre que clinicamente possível, na domiciliação dos cuidados que, em geral, permitirá melhorar os resultados em saúde, com uma redução de custos e um acréscimo da satisfação de doentes e família.

No entanto, para que a necessária transformação da situação atual se concretize, há naturalmente também que considerar a sustentabilidade do próprio sistema. Os custos dos cuidados têm aumentado substancialmente em todos os países desenvolvidos, devido essencialmente às novas tecnologias e tratamentos. Para ultrapassar este desafio, nos próximos anos deveremos investir nos cuidados primários e na prevenção que, na maioria dos casos, tem melhor relação custo-benefício do que a situação atual.

Está também provado que sistemas de financiamento plurianual baseados em valor incentivam os prestadores a reduzir o desperdício e a prevenir complicações, havendo evidência de que podem, de facto, reduzir os custos por doente. O prestador não mais irá beneficiar o volume dos cuidados, isto é, o aumento do número de serviços prestados, concentrando-se na melhoria desses cuidados, evitando, por exemplo, complicações e readmissões, e prestando os cuidados que é expectável que produzam os melhores resultados em saúde para o doente. A contratualização e o pagamento por desempenho terão aqui um papel ainda mais decisivo do que têm hoje.

No entanto, há ainda muito a investir na criação de sistemas de medição e de informação que sustentem tal transformação, havendo certamente situações em que o contexto poderá não o permitir. É o caso, por exemplo dos hospitais a tratar doentes com diagnósticos complexos muito avançados, com doenças raras ou em situações muito complexas, ou mesmo com doentes integrados em ensaios clínicos.

Referindo-me agora aos profissionais prestadores de cuidados, nas últimas décadas temos assistido a uma proliferação de especialidades e de subespecialidades, com os cuidados baseados nos hospitais e com a preocupação dos profissionais em registarem os cuidados prestados em plataformas eletrónicas, de uma forma nem sempre articulada, com cada grupo profissional a preencher o “seu” processo clínico. Há que não esquecer que a informação constante nos processos clínicos é propriedade de cada indivíduo cuidado, não do profissional ou da instituição e que a soma não é necessariamente sinónimo de integração e continuidade de cuidados.

É natural que o aumento da especialização persista no futuro. No entanto, o trabalho em equipa tornar-se-á cada vez mais essencial para garantir os melhores resultados de um plano de cuidados. É tempo de destruirmos o arame farpado que rodeia os territórios das várias profissões e trabalharmos em equipas multiprofissionais. A tecnologia tenta, no entanto, entrar, não sem resistência, nestes territórios. É o caso, por exemplo, do apoio da Inteligência Artificial em testes de diagnóstico, em áreas como a gastro, a oftalmologia, a imagiologia ou a oncologia, ou a utilização de técnicas e algoritmos de aprendizagem automática com vista a melhorar a tomada de decisão. Novos desafios estão aí para os profissionais do futuro.

Outra força que impele a transformação do SNS tem a ver com a revolução digital e o aparecimento de novos parceiros na prestação de cuidados, como é o caso das grandes organizações tecnológicas, à semelhança do que já aconteceu na banca ou no retalho. Até agora, nos países mais desenvolvidos, os cuidados de saúde têm sido prestados por profissionais com experiência em organizações com missões definidas, altamente reguladas e com modelos de pagamento específicos. O maior envolvimento esperado das pessoas e das comunidades, num contexto de uma revolução digital, fará, eventualmente, com que o futuro permita a entrada destes novos parceiros tecnológicos. Ora, com tudo isto, associado à crescente quantidade de dados gerados, os sistemas de saúde tradicionais poderão vir a estar rapidamente ultrapassados e os próprios modelos atuais de prestação de cuidados poderão estar em risco, em áreas como a qualidade e o acesso físico a preços acessíveis, quer para o SNS quer para as pessoas.

A necessidade de uma maior transparência e personalização dos cuidados futuros, levando em consideração as características individuais dos doentes, como genética, estilos de vida e o historial clínico, acelerará também certamente a utilização da telessaúde, de dispositivos de monitorização em tempo real e de registos eletrónicos para uma melhor gestão da própria saúde. Sabemos, no entanto, que o ritmo da transformação digital das organizações está também dependente do número de pessoas com literacia informática nessas organizações. Assim, há que investir no aumento dessa literacia. As organizações de cuidados e os profissionais têm, já hoje, um papel muito significativo nesse aumento de literacia.

Em resumo, a evolução do SNS no futuro estará dependente da sua organização e da evolução da tecnologia e do conhecimento científico. O futuro já começou, não será tarefa fácil entrar neste novo mundo e a sua atualização não será igual em todos os domínios e áreas. No entanto, se as organizações e os prestadores começarem a ser financiados pelo valor, pelos resultados alcançados nas pessoas e pela qualidade, encontrar-se-ão certamente formas inovadoras para uma melhoria efetiva dos cuidados.

Já começa a ser tarde para todos, decisores políticos, reguladores das profissões da saúde, pagadores, doentes, famílias e prestadores de cuidados, apostarmos seriamente numa abordagem proactiva e inovadora para transformar o SNS, de modo a que ele responda aos desafios do futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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