O temporizador em vez de alguém que nos olha

Gostava mais de viver no mundo dos likes do que no mundo real. As pessoas pareciam mais limpas e organizadas. Pudesse ela viver naqueles frames adorados por milhares de visualizadores.

Foto
O temporizador em vez de alguém que nos olha Pexels/ Mart Production
Ouça este artigo
00:00
02:21

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Tirar auto-retratos deixara de ser embaraçoso desde que começou a saber usar o temporizador da câmara do telemóvel. Agora já ninguém podia dizer das duas uma: que ninguém a olhava ou que era a própria a olhar-se em demasia. A eficácia do temporizador em vez da exposição falível ao olhar do fotógrafo. Era mais fácil ser-se seguro diante da máquina do que do olhar humano. O olhar humano observa e avalia, é preciso um certo grau de vulnerabilidade para se pôr debaixo dos olhos do outro.

Passou então a colocar fotografias suas diariamente nas redes sociais. Imagens filtradas, trabalhadas, que construíam na cabeça de quem as via uma pessoa fictícia. Era essa a pessoa que queria ser, não a real que sem sequer se pentear ia de manhã buscar pão à mercearia, muitas vezes de pijama. Queria ser a mulher atraente que encontrava trabalhando as fotografias. Queria o afeto postiço dos outros por uma imagem falsa.

Gostava mais de viver no mundo dos likes do que no mundo real. As pessoas pareciam mais limpas e organizadas. Pudesse ela viver naqueles frames adorados por milhares de visualizadores. Um dia, a comer pão, partiu sem querer o dente da frente. Não ficou particularmente ralada com a sua imagem no mundo real, mas como poderia continuar a publicar imagens suas sem um sorriso rasgado? Eram essas imagens de suposta felicidade que faziam mais sucesso no mundo dos likes. Em vez de um dentista, procurou uma aplicação. Gastou dinheiro, não no dentista mas na aplicação que lhe devolvia o dente da frente.

Continuou a fazer o seu trabalho em casa ao computador; tirando o senhor da mercearia, mais ninguém a via, e a partir desse dia apenas de máscara. Nas raras caminhadas que fazia, cruzava-se por vezes com alguns transeuntes e nesse caso mantinha por pudor a boca fechada. Apaixonou-se ao longo da vida por duas pessoas online, mas nunca teve intenção de encontrá-las pessoalmente. A vida fictícia parecia-lhe perfeita. Sem risco ou sofrimento. Uma vida idealizada como nos filmes. Tornou-se a realizadora do seu próprio filme, editando cada ficção com cada vez mais rigor e beleza.

Quando morreu, os milhares de seguidores não sentiram a sua falta. O algoritmo deixou de a destacar no feed porque deixou de lhe dar alimento. Desapareceu simplesmente para alguns, outros deixaram de a seguir.

Sugerir correcção
Comentar