Seu Nome Era Gisberta: uma “viagem imersiva” pela vida de um “marco nacional”

A animação dá a conhecer os 45 anos de vida de Gisberta Salce, mulher trans assassinada em 2006. O filme de Sérgio Galvão Roxo e de Pedro Velho vai chegar ao festival SXSW.

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Gisberta Salce. Já ouviste falar deste nome? Gisberta é protagonista de um dos casos mais mediáticos de transfobia ocorridos em Portugal e é a figura central da animação Seu Nome Era Gisberta, criada pelo realizador Sérgio Galvão Roxo e pelo ilustrador e assistente de produção Pedro Velho.

“A Gisberta é um marco da história nacional”, começa por contar Sérgio Galvão Roxo, 33 anos, de Lisboa. “É uma pessoa que foge de um país transfóbico, do Brasil —​ que é há anos o país que mais mata pessoas trans —, para um país, Portugal, onde acreditava que iria ter melhores chances de não ser vítima de um crime de ódio. E é cá [que é] vítima do maior crime de transfobia.”

O crime aconteceu em Fevereiro de 2006: Gisberta foi encontrada morta no poço de um edifício abandonado, na freguesia de Bonfim, no Porto. As notícias do homicídio chegaram aos jornais em Março e davam conta da morte de um “sem-abrigo”, “travesti”, “que costumava pernoitar num edifício inacabado”. A mulher foi agredida por 14 jovens com idades entre 12 e os 16 anos. Em Agosto, noticiava-se que os “menores envolvidos nos maus tratos” iam ser condenados a “penas entre os 11 e os 13 meses de internamento em centros educativos”. O assassínio chocou Portugal e desencadeou um debate sobre a intolerância e a igualdade de género. Desde então, Gisberta é símbolo da luta contra a transfobia e homofobia.

Tal como muitos outros artistas, Sérgio foi inspirado por Gisberta a produzir uma obra. Mas “porquê esta protagonista?”. Além de representar “o crime de ódio [contra trans] mais bárbaro de que há registo”, o caso da Gisberta é uma “história potencialmente conhecida a nível nacional”, que está “mal contada”, admite o realizador.

Para Sérgio, as pessoas tendem a conhecer apenas o início e o fim da história de Gisberta: como chegou a Portugal e como partiu – faltando-lhes “o meio”. E é com Seu Nome Era Gisberta que os espectadores podem saber mais sobre o que falta na narrativa. “O objectivo deste trabalho é devolver humanidade à Gisberta”, que foi anulada pelos relatos mediáticos na altura, e dar “informações que nunca tinham sido partilhadas, com um contexto fundamentado, com relatos de família e de amigas, e com detalhes importantes que nos ajudam a ligarmo-nos e a conhecer mais esta pessoa”.

Seu Nome Era Gisberta é também um acto de activismo artístico. Sérgio procurou sempre trabalhar com temas relacionados com a comunidade LGBTQIA+. “Há sempre muita fragilidade no que toca a esta temática e estamos sempre na iminência de perder os direitos de existência”, justifica. E ao perceber que estes “actos discriminatórios” têm “um grave problema de invisibilidade”, decidiu centrar-se “no mais conhecido [caso de transfobia de] que há registo [em Portugal]”.

A obra cinematográfica leva assim o espectador “numa viagem imersiva pelos 45 anos de vida de Gisberta”, lê-se no site do projecto. E, apesar da brutalidade que caracteriza os últimos dias de vida da mulher, o documentário pretende evitar sentimentos de aversão. Uma das “grandes características deste trabalho” é retratar a vida da personagem “sem recurso à violência”, esclarece Sérgio. Sim, são referenciados “os actos de violência que foram perpetrados contra a Gisberta, mas “há o cuidado de não gerar repulsa” no espectador, nota.

Do mestrado ao festival SXSW​

Sérgio começou a desenvolver o documentário em 2021, como um trabalho para o mestrado de Comunicação e Media, da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais, no Politécnico de Leiria. Pegou nas “potencialidades da realidade virtual” e decidiu usá-las como “ferramenta de intervenção e educação social contra a transfobia” para criar Seu Nome Era Gisberta, com a ajuda do ilustrador Pedro Velho e da actriz de voz trans brasileira Alexia Vitória. O realizador entrevistou ainda pessoas próximas de Gisberta e analisou mais de 60 peças jornalísticas.

O projecto ficou pronto no ano passado e vai integrar a programação do festival norte-americano SXSW 2024, que decorre entre 8 e 16 de Março, em Austin, Texas. Para Sérgio, o mais importante “é mostrar o projecto (...) e passar a sua mensagem”, por causa da "quantidade desproporcional de violência que existe contra esta comunidade” e da "necessidade de trabalhar para proteger estas pessoas”.

Quem assistir ao trailer do documentário vai notar de imediato que os acontecimentos de Seu Nome Era Gisberta parecem cercá-lo completamente. Como a obra é desenvolvida com recurso à realidade virtual, o espectador pode “viajar no mundo de Gisberta” e ser rodeado “pela narrativa”, diz Sérgio.

Além de poder participar enquanto testemunha do que aconteceu, as pessoas podem ainda “imergir no corpo da Gisberta”.“Ao longo da experiência imersiva, a pessoa pode escolher para onde quer olhar: se olha para história de vida de Gisberta que está a ser contada, ou se olha para os acontecimentos que estão a decorrer no Pão de Açúcar em 2006”, clarifica o realizador.

A construção da narrativa com recurso a cenários e personagens animadas também não passa despercebida. “Dentro do contexto da realidade virtual”, quando as pessoas “vêem figuras humanas ou elementos muito humanizados”, afastam-se emocionalmente. A solução para contrariar este distanciamento foi dar vida ao filme através da animação, que “ajuda a criar proximidade” e a estabelecer “relações emocionais”.

É ainda perceptível que a obra está repleta de “tons mais sóbrios e pastéis” e que as cores mais garridas são usadas de forma pontual. “A única personagem colorida é a Gisberta”, declara Sérgio. “Estamos a falar de uma história com muita violência e com muitos contornos difíceis” e, para que o espectador não se desviasse do “ponto central” da narrativa, destacaram “o que é mais importante”.

A história ganhou voz a partir da locução de Alexia Vitória. À primeira vista pode parecer que estamos a ouvir uma narração feita na primeira pessoa, mas Sérgio explica que não: “A narração não é feita em nome da Gisberta.” “A Gisberta tem a sua própria voz. A voz da Alexia é a voz representativa de todas as pessoas vítimas de transfobia”, adiciona.

O documentário vai ser ainda transmitido em Abril, entre os dias 5 e 14, no Kaboom Animation Festival, na Holanda. O projecto já marcou presença no Dok Leipzig – Festival Internacional de Documentário e Animação de Leipzig e no Ji.hlava IFF – Festival Internacional de Documentário de Jihlava, na República Checa, no ano passado.

Texto editado por Renata Monteiro

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