#JeSuisCharlie foi a hashtag mais viral da história mas hoje não voltaria a repetir-se. Eis porquê
Depois do ataque terrorista ao Charlie Hebdo, a hashtag #JeSuisCharlie tornou-se viral. Hoje, as dinâmicas nas redes sociais mudaram, mas continua a ser a mais vista de sempre.
O dia 7 de Janeiro marcou os nove anos do tiroteio na revista satírica Charlie Hebdo que matou 12 pessoas e feriu 11 funcionários. O ataque levou a uma onda nunca antes vista de solidariedade por todo o mundo. Muito deste apoio foi organizado online através da hashtag #JeSuisCharlie (que significa, numa tradução literal, eu sou Charlie).
Na minha investigação de doutoramento, estou a explorar o papel dos órgãos de comunicação social na memória, em especial de ataques terroristas. A popularidade imensa do #JeSuisCharlie é um exemplo exímio de como a tecnologia que temos disponível pode moldar o nosso entendimento das experiências partilhadas.
O designer Joachim Roncin tem os créditos de ter sido o primeiro a usar a frase, que foi publicada no antigo Twitter, hoje X, menos de uma hora depois de ter começado o ataque. Foi imediatamente convertida em hashtag e, numa semana, já tinha sido utilizada seis milhões de vezes, tornando-se uma das hashtags mais partilhadas de sempre.
Quando o ataque aconteceu, em 2015, o Twitter estava no seu auge, com hashtags bem estabelecidas a direccionar o conteúdo. As hashtags bem-sucedidas têm alguns pontos em comum: são emotivas, polarizadoras, fáceis de adaptar e feitas a partir de um slogan apelativo que conta uma história maior.
A hashtag #JeSuisCharlie aproveitou tudo isto. Foi adoptada em todo o mundo pelos defensores da liberdade de expressão, mas surgiram rapidamente uma série de contranarrativas, apresentando novas perspectivas sobre o ataque. Outra hashtag #JeNeSuisPasCharlie (eu não sou Charlie, em português) foi usado por aqueles que, estando também contra o ataque, discordavam sobre o conteúdo ofensivo da publicação. Ao mesmo tempo, surgiu ainda a hashtag #JeSuisAhmed, que prestou homenagem a Ahmed Merabet, o polícia muçulmano francês morto no ataque.
A história de Charlie é complexa, mas a estrutura da hashtag obrigou as pessoas a escolherem um lado. Ser ou não ser Charlie foi além do ataque à redacção do Charlie Hebdo. Representou o debate histórico e cultural profundamente enraizado na população francesa sobre a liberdade de expressão, os direitos humanos, o papel do cartoon e a laicidade (a separação do Estado da Igreja).
Um poder duradouro
A hashtag #JeSuisCharlie teve um alcance global, com versões em espanhol e inglês a tornarem-se também populares.
O legado foi até duradouro, o que é algo invulgar nas redes sociais. Ao analisar tweets dos últimos anos, percebo que o envolvimento com #JeSuisToujoursCharlie (para sempre Charlie, em português), #PlusQueJamaisCharlie (que se traduz como “mais do que nunca Charlie”) e #JamaisCharlie (nunca Charlie, numa tradução livre) tem mantido a narrativa de maneiras novas e subtis.
O fenómeno viral #JeSuisCharlie e respectivas versões mostra como o Twitter e a hashtag espoletaram um movimento global de solidariedade e lembrança colectiva como nunca antes tinha sido visto.
Nove anos depois, a nossa interacção nas redes sociais evoluiu. Não voltámos a ter uma hashtag viral à escala de #JeSuisCharlie nestes anos e parece improvável que seja replicado.
Como seria o #JeSuisCharlie hoje em dia?
Hoje interagimos online de uma forma diferente do que em 2015. O Twitter é agora X, e a estratégia de Elon Musk tem dirigido os utilizadores para outras plataformas como Mastodon e o Threads do Instagram. Os utilizadores mais novos, em particular, estão a escolher redes como o TikTok e o Instagram em vez do X ou do Facebook.
As hashtags continuam a ser uma forma de organização das redes, mas são agora usadas regularmente nestas plataformas. Podíamos esperar que a de Charlie hoje em dia fosse ainda mais polarizadora, uma vez que a mensagem tem passado entre diferentes plataformas e comunidades fragmentadas entre Facebook, X, Instagram e TikTok.
Hoje em dia, os utilizadores das redes sociais criam memórias partilhadas através das suas experiências sociais, mais do que expressando solidariedade colectiva como se viu através de #JeSuisCharlie. Por outras palavras, as pessoas são hoje mais propensas a partilhar as suas próprias narrativas como parte de uma história maior em vez de repetirem ou partilharem uma mensagem única.
O conteúdo viral hoje espalha-se em ondas de actividade imprevisíveis e intensas, surgindo e desaparecendo de forma quase imediata, com ciclos que duram, às vezes, tão pouco como duas ou três horas. Por isso, muitas vezes é difícil rastrear o início de uma frase ou ideia específica. E plataformas como o TikTok tornam mais fácil responder, adaptar ou misturar conteúdo em vez de partilhar, de forma passiva.
O uso do algoritmo para influenciar o comportamento dos utilizadores das redes sociais significa que as memórias partilhadas agora circulam frequentemente em “câmaras de eco”. Isso torna menos provável que um utilizador encontre, de forma orgânica, uma hashtag popular.
Os movimentos virais de hoje brilham intensamente, mas têm vida curta e muitas vezes perdem-se na enchente de conteúdo — que até inclui material gerado por Inteligência Artificial. Ainda podemos esperar práticas de lembrança partilhada, como #JeSuisCharlie. Mas daqui a quase dez anos, ainda nos vamos lembrar das hashtags populares de hoje? Quase de certeza que não.
Exclusivo P3/The Conversation
Emma Connolly é estudante de doutoramento em Política e Estudos Internacionais na Open University