Quase todos os dias, voluntários em Buriácia, república russa no Leste da Sibéria, levam cães aterrorizados e desnutridos ao colo para a estação de comboios de Ulan-Ude. Para os mais de 3000 cães que estavam nos abrigos da região, a retirada em massa para cidades a milhares de quilómetros pode ser a última oportunidade que têm para evitar a morte.
Em Novembro, a Buriácia tornou-se a primeira região da Rússia a adoptar leis que restabelecem os abrigos onde se permite eutanasiar animais, com o objectivo de controlar a população de animais errantes e já depois de o Presidente russo, Vladimir Putin, ter feito passar uma lei que dá às autoridades regionais a possibilidade de decidir sobre este assunto de forma independente.
As novas regras permitem que as autoridades de Buriácia instalem “abrigos temporários”, um conceito pouco preciso, onde os animais errantes que sofrem de doenças, cães considerados “socialmente perigosos” e os que não são procurados há 30 dias podem ser eutanasiados.
Os animais devem receber uma “eutanásia compassiva”, com recurso a duas injecções: uma anestésica, que deixa o animal a dormir, e outra com um químico que faz parar os batimentos do coração e pulmões. Contudo, os activistas dos direitos dos animais dizem que as clínicas estatais e as empresas subcontratadas para o efeito estão a tentar poupar dinheiro e muitas vezes usam relaxantes musculares, que sufocam um animal consciente.
As novas leis em Buriácia contradizem as políticas anteriores de protecção animal, promessas feitas por Putin – um amante de cães confesso –, durante a tentativa de revisão da Constituição do país, em 2020. As revisões constitucionais permitiram que Putin se mantivesse no poder até 2036 e também introduziram várias outras mudanças, incluindo uma providência sobre a necessidade de construir um “sentido de responsabilidade no que toca ao tratamento dos animais” na sociedade russa.
A medida foi feita a pensar nos activistas pelos direitos dos animais, que, durante anos, apontaram a falta de responsabilização penal das pessoas que maltratavam ou abandonavam os seus animais, não lhes colocavam microchips ou os castravam. No passado, alguns voluntários também relataram a existência de métodos de controlo animal violentos em algumas regiões, depois de terem encontrado cães errantes com as gargantas cortadas ou crânios partidos.
Durante um evento de campanha que antecedeu o referendo constitucional, Putin disse que os novos artigos constitucionais iam permitir que os russos “se sentissem como pessoas mais civilizadas”. Outras medidas ilegalizaram os canis onde se permitia a morte dos animais e a eutanásia em massa.
“Dinheiro alocado [aos animais] foi roubado”
Todavia, tudo isso mudou na última Primavera, quando duas pessoas foram encontradas mortas no Sul da região de Astracã, com marcas de mordidelas nos corpos, e depois de uma matilha de cães ter atacado ferozmente um rapaz de oito anos, que acabou por morrer, na cidade de Oremburgo. Os ataques motivaram a ira dos residentes locais e o governador de Astracã, Igor Babushkin, respondeu, lançando uma campanha de lobby para reverter as leis de protecção animal, afirma Yuri Koretskikh, director da Aliança de Defensores dos Animais.
“Houve escândalos que vieram uns atrás dos outros, as matilhas de cães aumentaram muito, porque o dinheiro alocado a esse assunto foi roubado”, afirmou Koretskikh. O governador, acrescentou, “decidiu apenas livrar-se de toda a responsabilidade e atirou as culpas todas para o facto de as autoridades não poderem matar os cães, que desde então vagueiam pelas ruas e são perigosos”.
O projecto de lei foi introduzido pela Duma, a câmara baixa do Parlamento russo, por Sardana Avksentieva, antiga presidente da câmara de Iacútia, no Leste da Rússia, que foi apontada como culpada pela morte de mais de 200 gatos e cães, encontrados com as gargantas cortadas num abrigo local.
Avksentieva negou qualquer envolvimento e as autoridades disseram que a medida era necessária para controlar um surto de raiva. Activistas locais acusaram a presidente da câmara de matar os animais para poupar dinheiro na manutenção do abrigo.
Koretskikh acredita que a velocidade com que a lei foi aprovada pela Duma foi, provavelmente, o resultado de lobby feito por vários governadores que desperdiçaram ou se apropriaram indevidamente de fundos estatais que seriam usados num programa de armadilhas, esterilização e devolução, sabotando a iniciativa durante anos, mesmo quando outras regiões conseguiram que o número de cães errantes diminuísse.
Animais grandes condenados a ficar em canis
Em Buriácia, a medida esteve em vigor durante os dois últimos anos, e proibiu os canis de soltarem animais castrados com mais do que 25 centímetros de altura – o que condenava qualquer cão maior do que um spitz ou um chihuahua. Esta restrição sobrelotou os abrigos já sobrecarregados da região.
Muitos animais de porte grande ficaram num canil privado, chamado Ananda, que recebeu verbas do Governo para alojar centenas de cães sujeitos a restrição de altura. Mas, em Agosto, o financiamento acabou e os voluntários tiveram de encontrar recursos para alimentar os cerca de 3000 cães que lá viviam.
Três meses depois, Buriácia autorizou a eutanásia, com as autoridades a alegar que, nos últimos três anos, a região registou pelo menos seis casos de ataques de cães a humanos, que resultaram em quatro mortes e dois casos de crianças com “danos morais e físicos irreparáveis”.
O governador, Aleksei Tsydenov, disse que era “mais humano eutanasiar um cão do que deixá-lo em clausura a vida toda”. Já outros responsáveis argumentam que os animais libertados se iriam organizar em matilhas e continuar a atacar as pessoas.
Desde o fim de Dezembro que vários voluntários da Sobaka Schastya (ou fundação “Cão da Felicidade”) têm acordado às 3h para retirar os cães do abrigo e pô-los num comboio para destinos que, muitas vezes, ficam a três ou quatro dias de distância.
“Quase todas as retiradas dos animais são assim, muitos cães têm medo, muitos estão fracos, e é a sua primeira vez nestes ambientes. Têm medo de comboios”, disse Daria Zaitseva, directora da fundação. “Por isso temos de levar a maioria dos cães ao colo.”
A fundação já retirou cerca de 150 cães de Buriácia, com alguns dos animais a encontrar casa em sítios tão longínquos como a Suíça. Os voluntários da associação montaram uma rede de canais de Telegram para alojar os restantes animais algures no país.
Os vídeos que mostram os voluntários a levar ao colo animais paralisados de medo tornaram-se virais na Rússia, fazendo aumentar as taxas de adopção perto do Ano Novo – mas a organização teme que o interesse não dure muito e que não haja dinheiro suficiente e mãos para cuidar dos cães que ainda estão no canil, muito menos para retirar todos.
Muitos desses cães do canil de Buriácia têm donos registados que os abandonaram, ao deixarem que deambulassem nas ruas. Se um animal for capturado e tiver coleira ou chip, fica num canil apenas durante 60 dias até ser eutanasiado. Os abrigos podiam manter os cães, com o dinheiro de que dispõem, mas os activistas dizem que isso não é realista, porque os canis privados já estão com dificuldades económicas sem o apoio do Estado.
“Em Buriácia temos um problema com animais errantes, porque as pessoas vivem, na sua maioria, em casas próprias, mas não há cultura de tratar os animais com responsabilidade e ninguém está a trabalhar junto da população para mudar isso”, diz a gestora do canil Ananda, Nargiza Muminova.
Muminova disse que está a registar os cães que restam como sendo dos empregados do canil para os salvar da eutanásia.
Há mais três regiões que seguiram os passos de Buriácia e fizeram leis que permitem a morte de animais – alguns com períodos mais curtos, 11 dias depois de capturados.
Um membro do comité ecológico da Duma, Vladimir Burmatov, criticou as autoridades de Buriácia, afirmando que a nova lei não quer dizer que se possa fazer um “safari de animais errantes” e que, em vez disso, se deviam focar em colocar microchips e castrar.
“Se pegarmos no exemplo de Buriácia, se os voluntários conseguirem retirar todos aqueles pobres cães para fora da região, não resolve o problema, porque eles vão começar a matar novos”, disse Koretskikh. “E com outras regiões a juntar-se, podemos ter dezenas e milhares de animais num ano e poucos recursos para os salvar a todos, e os voluntários terão de aceitar que estamos de volta ao tempo do assassinato em massa, tal como era há seis anos.”
Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post