Em Gimonde, Bragança, o pão dá futuro a cereais esquecidos
Elisabete Ferreira, na Pão de Gimonde, e Luís Afonso, na Moagem do Loreto, tentam dar nova vida ao centeio transmontano, ao trigo-barbela e a outros grãos nutritivos.
Ela lidera a padaria da família, na aldeia brigantina de Gimonde e, a partir dos melhores ingredientes, cria pão com uma paixão que costumamos reconhecer nos artistas. Ele mantém viva outra empresa familiar, uma quase centenária moagem de cereais na cidade de Bragança, de onde em tempos, garante, saiu “o melhor centeio do mundo”. Elisabete Ferreira e Luís Afonso estão a lutar, cada um ao seu modo, pela reactivação de uma cultura em declínio, mas para a qual vislumbram futuro, se outros se envolverem.
Não são tão comuns assim os casos em que, de uma aldeia do interior, alguém, em vez de fugir, cria raízes, e dali abraça o mundo. E o mundo de Elisabete, filha do padeiro Manuel Ferreira, nascida em França, em 1977, é largo de horizontes. Foi essa largueza de perspectivas que a levou, aliás, a fundar o Clube Richemont Portugal, a que preside.
Estávamos em plena pandemia quando ela instalou entre nós um nó desta selecta rede internacional, com clubes em 11 países europeus, no Peru e no México, e que reúne os melhores padeiros e outros agentes interessados no estudo, investigação, desenvolvimento e partilha de conhecimento na área da panificação. Por estes dias prepara-se para mostrar produtos portugueses num encontro de líderes em Rimini, Itália, e tem já viagens marcadas para Madrid e para a Croácia, até Fevereiro.
A luta é dura, e sozinho ninguém ganha batalhas. Assim pensa Elisabete Ferreira, que, ao contrário da mais famosa e lendária padeira portuguesa, trata os vizinhos espanhóis com carinho, pois encontrou para lá dessa costura a que chamamos fronteira gente aberta a partilhar conhecimento como quem partilha um naco de pão com um viajante, pelo caminho.
O pão de centeio transmontano
Trazer o Clube Richemont para Portugal – onde já se organizaram várias iniciativas e acções de formação envolvendo parceiros internacionais – foi o corolário de uma década a procurar conhecimento entre os melhores, alguns deles instalados no país vizinho que, a partir de Bragança, ela percorre de comboio, com facilidade. “As pessoas não têm a noção do fácil que é, daqui, ir a Zamora numa hora, e em 1h20 estar em Madrid, e poder regressar no mesmo dia.”
Muitas pessoas também não terão a noção de que, deste lado da fronteira, é de Gimonde que sai um dos melhores pães vendidos nas lojas Continente – o pão de centeio transmontano, semi-integral, cuja moagem é feita também em Bragança. Pelo mesmo circuito chega a todo o país o pão de trigo-sarraceno e nozes, a bola de carne transmontana e os económicos, um doce tradicional da região.
A parceria com o gigante português da distribuição (detido pelo grupo Sonae, proprietário do PÚBLICO) põe estes produtos da padaria da família Ferreira no meio de uma panóplia de pães de várias regiões, lutando pela atenção dos clientes. E abriu-lhes portas que nunca conseguiriam transpor, se optassem pela fixação a uma clientela local, como acontece muito no negócio da panificação, um pouco por todo o país.
Na sua juventude, ao fazer entregas do pão que ajudava a amassar, nas férias e nos fins-de-semana, Elisabete Ferreira já se fora apercebendo da insustentabilidade de um negócio dependente de um território em despovoamento acelerado. O pai, Manuel Ferreira, regressara a Gimonde em 1986 com a família, após anos de emigração em França, e foi trabalhar para a padaria de um tio, fundada em 1960, que os Ferreira haveriam de comprar em 2000.
A padaria como laboratório
Essa decisão representou um salto na história desta empresa. Tal como um pedaço de massa-mãe cuidadosamente alimentado, como aquele que se eterniza em todos os pães e doces que dali saem, sem nunca sair de Gimonde, a Pão de Gimonde reinventou-se, muito graças à filha formada em gestão: ganhou uma marca e uma filosofia, a de utilizar somente farinhas estremes, sem aditivos, respeitando a tradição, inovando, por seu turno, no desenvolvimento de novas receitas. E até ganhou um novo espaço, para além da fábrica.
Há três meses, abriram na cidade de Bragança uma padaria de venda ao público. Logo na organização do espaço – que forma um circuito para os clientes, deixando para os escaparates e balcão de serviço o espaço central –, a loja reflecte os intuitos de Elisabete Ferreira: valorizar o que fazem, a produção local de outras iguarias, ali disponíveis, as farinhas dos seus fornecedores, Afonso, Lopes & Cia., de Bragança, e Molinos del Duero, de Zamora.
No espaço destaca-se ainda uma enorme janela em quadrícula, a fazer lembrar os planos envidraçados de uma antiga oficina, encimado, a letras garrafais, pela palavra Laboratório. Do lado de lá daquele vidro, preparam-se os pedidos dos clientes, à vista destes, mas também se fazem, de facto, experiências de novas receitas, com velhos e novos ingredientes.
Economia circular
Inscrita na associação Business as Nature, signatária do Manifesto Mulheres pelo Clima e participante do projecto Guardiãs da Natureza, pela inserção de Gimonde no Parque Natural de Montesinho, Elisabete Ferreira tem evidentes preocupações com a circularidade da sua produção. Não espanta, por isso, que, por estes dias, esteja a apoiar uma investigadora universitária, testando as possibilidades de incorporação de farinha feita a partir de grainhas de uva, um resíduo da viticultura, no pão e em doces.
Há anos que estabeleceu uma relação profícua com o sistema universitário regional, e a empresa é, aliás, membro do projecto transfronteiriço Transcolab. É outra “rede de conhecimento enorme”, no sector agro-alimentar, explica, cheia de “gente com paixão”, na qual conheceu os donos da centenária moagem zamorana que ainda entrega grão moído em mós de pedra, e da qual se tornou cliente, principalmente para as farinhas biológicas de cereais menos comuns. Outras, compra-as em Bragança. Incluindo, claro, o centeio de Trás-os-Montes.
A Moagem do Loreto
A poucos minutos da nova padaria da família Ferreira, Luís Afonso explica com entusiasmo a história da quase centenária marca Moagem do Loreto, fundada pelo seu avô em 1926. Este veterinário e antigo vice-presidente da Câmara de Bragança comprou a fábrica da Afonso, Lopes & Cia., um edifício classificado na sede do concelho, a familiares, em 2013, quando ela “estava prestes a fechar”, e reactivou uma actividade com grande tradição na região.
Sentado no escritório onde o pai trabalhara com um tio, o brigantino de 60 anos, que fundou também a Novavet, o “maior exportador de medicamentos veterinários do país”, e que divide o tempo entre as duas empresas, abre o livro de memórias. A poucos metros dali, aponta, um moinho no rio Fervença testemunha o tempo em que este curso de água, conhecido como “o Bazófias”, pela irregularidade de caudal, alimentava com a sua energia as mós de mais de 180 estruturas do género.
Hoje é eléctrica a energia que alimenta a moagem, mas o cheiro dos cereais, a arquitectura e os interiores do edifício, com os seus janelões procurando a luz, remetem para uma actividade de outros tempos. Um passado à procura de futuro na maquinaria recente que rentabiliza tempo e consumos, e na aposta num novo espaço de silagem, por exemplo.
Venha o grão, que, com financiamento comunitário, a empresa já investiu centenas de milhares de euros para enfrentar, com melhor saúde, os próximos anos. O problema, concordam Luís Afonso e Elisabete Ferreira, é encontrar quem cultive. Uma questão, que, na perspectiva de ambos, mereceria um empenho de vários agentes políticos, empresariais e académicos da região.
Ainda na semana passada, o município de Montalegre deu a conhecer um projecto de valorização económica e turística do tradicional pão de centeio, que por ali se cultivava muito, também, tradicionalmente. A iniciativa pretende incentivar a produção de cereal, em modo biológico, para revitalizar alguns fornos antigos, nas aldeias do concelho do Barroso.
O objectivo é comum, mas Luís Afonso aponta rapidamente várias dificuldades a vencer: o despovoamento e envelhecimento da população; pulverização da propriedade agrícola em minifúndios, detidos por pessoas com pouca propensão para juntarem terras em projectos comuns; e a alteração do padrão de culturas da região, que foi abandonando cereais como o trigo-barbela ou o centeio, bem adaptados ao exigente clima transmontano, em favor de variedades de trigo mais produtivas e outras culturas permanentes.
Um país em défice de cereais
Não foi só aqui. Por motivos vários, ao longo das últimas décadas Portugal perdeu grande parte da sua capacidade de produção de cereais. O país até tem uma estratégia para inverter esse declínio, recuperando alguma da sua soberania alimentar, mas nem a guerra nem a instabilidade mundial – que, sob múltiplas formas e a partir de várias geografias, ameaça os fluxos de abastecimento e desestabiliza os preços – trouxeram alguma mudança visível.
A fileira é claramente deficitária. O país teve em 2022 a pior campanha de sempre nos cereais de Inverno. E, só de Janeiro a Novembro do ano passado, acumulava um saldo negativo de mil milhões de euros, fruto do peso das importações, segundo dados do Sistema de Informação dos Mercados Agrícolas.
A Moagem do Loreto não tem outro remédio que não seja comprar fora grande parte do cereal que transforma, numa logística que os obriga a fazer mais de 500 quilómetros, até ao Porto de Lisboa. No entanto, ainda que Bragança esteja longe dos tempos em que surgia nas estatísticas como o concelho português com mais produção de centeio – e o quarto no trigo –, Luís Afonso garante que o seu moleiro ainda consegue distinguir pelo cheiro e produtividade o de Trás-os-Montes, face ao que vem de fora.
O melhor centeio do mundo
Puxando de novo pela memória, o dono da Moagem do Loreto recorda tempos idos em que os tractores faziam fila para entregar nos silos locais da antiga Empresa Pública de Abastecimento de Cereais (EPAC) 14 mil toneladas de centeio. A fábrica onde estamos tinha uma área reservada só para este cereal que, pela mão da EPAC, ganhava prémios lá fora.
O de Trás-os-Montes “chegou a ser considerado o melhor centeio do mundo”, lembra. Contudo, em paralelo, a moda do pão branco, a partir de farinhas refinadas e melhoradas com aditivos que lhe dão “força”, ganhava terreno e o centeio, principalmente nas regiões onde tinha tradição, ficava com o selo de pão dos tempos de pobreza. A evitar, portanto. “A indústria da panificação perdeu muita dessa sabedoria de trabalhar com cereais fracos, como o trigo-espelta e o barbela”, nota Luís Afonso.
Elisabete Ferreira concorda, mas não se conforma. Na fábrica da Pão de Gimonde, a poucos metros do rio Sabor, onde a lenha ainda alimenta dois grandes fornos, mostra-nos o armazém de farinhas, elogia o seu carácter grosseiro, o ar de quase farelo, mais evidente nas integrais, que valoriza, face às refinadas que dominam a indústria.
Sustentada na investigação já produzida internacionalmente, insiste que os ingredientes e processos que outrora eram sinal de rusticidade precisam de ganhar espaço entre os consumidores, pelos nutrientes que aportam, pelo bem que fazem à saúde. Principalmente se forem produzidos, como aqui, sem aditivos químicos e a partir de massa-mãe, exclusivamente, com tempos de fermentação longos, a rondar as 24 horas.
Numa sociedade que impõe a rapidez como o alfa e ómega da economia, este tempo lento e longo, nota Elisabete, favorece processos enzimáticos que minimizam o teor de açúcares e de glúten, a proteína de que tanta gente quer fugir, e que está bem presente nos alimentos à base de cereais fermentados rapidamente e na chamada fast-food.
Lamentando que, para fazer uma análise de caracterização química e nutricional de um pão, lhe peçam mais de mil euros, a partir da pequena aldeia de Gimonde Elisabete Ferreira promete continuar este combate pela informação ao consumidor, pela promoção de um pão mais saudável. Afinal, se como se lê numa ardósia na sua padaria, citando Antoine de Saint-Exupéry, “não existe nada igual ao sabor do pão partilhado”, mais vale que ele seja mesmo bom, pelo bem que nos sabe, e pelo bem que nos faz.