Ser pais: parar e refletir

Tendo em conta o interesse superior das crianças, não posso concordar com os extremismos e fundamentalismos que por vezes se praticam na parentalidade.

Foto
"Desacelerar é viver com mais qualidade" Vidal Balielo Jr/pexels
Ouça este artigo
00:00
06:10

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Não é novidade que vivemos vertiginosamente e num mundo demasiado competitivo. Atualmente, muitas pessoas começam a assumir consciência disso, a refletir e a tentar mudar hábitos e atitudes.

Desacelerar é viver com mais qualidade, de forma a privilegiar algum tempo para si mesmo como pessoa, e sacudindo a tentação da corrida desenfreada por um lugar cimeiro num pódio imaginário.

Ou seja, adotando uma filosofia de vida diferente da que nos é impingida na sociedade ocidental, uniformemente formatada e aparentemente com os requisitos que visam a felicidade, mas que não preenchem interiormente, pois não dão prioridade ao que é mesmo essencial para o ser humano ser feliz.

O autocuidado — que começa a estar na moda nos dias de hoje para contrariar a forma de viver em piloto automático — é realmente importante, com implicações benéficas na saúde mental quando praticado com consistência, e em todas as áreas da vida pessoal.

Como pediatra, acredito ser necessário aplicar esta mudança também na forma de sermos pais: auto cuidar a forma de criar os filhos, de ser família.

Parar e refletir, tentando ver por outro prisma, praticando uma filosofia parental cujos frutos sejam crianças mais felizes.

Focando-me na parentalidade, mesmo antes de o bebé nascer, parece que tudo é uma “corrida” para que o produto final seja um filho perfeito.

Um parêntesis para distinguir desta “corrida” a vontade de ser bons pais, responsáveis, atentos, querendo o melhor para os filhos, atitudes que obviamente são fundamentais.

Em tudo na vida, no meio é que está a virtude.

Assim sendo, não critico obviamente uma preparação para o nascimento de forma a receber o bebé com conforto e noções básicas de como o cuidar.

À medida que o tempo passa, na introdução alimentar, acho importante pretender que o bebé aprenda a mastigar e que a sua alimentação seja saudável.

Quando surgirem sinais de doença, inevitáveis porque o bebé vai contactar com micróbios e o seu sistema imunitário tem de aprender a lidar com eles, os pais devem saber quais são os sinais mais importantes que impliquem gravidade, minimizar a dor, alimentar, mas principalmente hidratar.

Em todo o processo de desenvolvimento, desde os primeiros tempos, e depois durante a fase escolar, incentivo o empenho dos pais para ajudarem a criança a obter estímulos adequados à fase em que se encontra, proporcionando-lhe interação com brinquedos, mas principalmente com bons cuidadores, que dialoguem e lhe deem afeto.

Posteriormente, os pais devem estar atentos à integração escolar e evolução na aprendizagem, arranjando também atividades de ocupação dos tempos livres que sejam adequadas a um bom desenvolvimento cerebral; mas sem pressão e sem exagero.

Ou seja, considero indispensáveis todas as práticas que ajudem as crianças a crescerem com saúde no seu conceito alargado: física, mental e social.

Mas, tendo em conta o interesse superior das crianças, não posso concordar com os extremismos e fundamentalismos que por vezes se praticam na parentalidade.

Não existem seres humanos perfeitos.

O alarmismo relativamente às doenças, apenas gera mais ansiedade nos pais, e consequentemente também nos seus filhos.

Tratar as doenças com atenção, mas tentando ter em mente que o que é raro, é raro.

Que todas as crianças terão febre no seu percurso de aquisição de defesas, e geralmente é necessário tempo para surgirem outros sinais antes de recorrer ao médico (salvo exceções como recém-nascidos ou crianças com outras doenças).

Importa confiar no pediatra e esperar quando é para esperar…

A preocupação exagerada com o desenvolvimento infantil, sem dar o devido tempo à criança (cada uma com o seu ritmo), estabelecendo comparações com filhos de amigos ou familiares ou com o que se lê em fóruns de pais, leva a receios infundados e a stress parental.

Importa, reafirmo, confiar no pediatra, que orientará situações que realmente o justifiquem.

O radicalismo e a rigidez na introdução alimentar provoca inevitavelmente conflitos com o bebé.

A compra de uma parafernália de objetos de puericultura e brinquedos xpto, só porque influencers com milhares de seguidores recomendaram, não significa que sejam mesmo indispensáveis, existe muito marketing e patrocínios subjacentes.

Em muitas coisas quem escolhe é a criança.

A criança pode e deve ser guiada e orientada, mas se não vai querer usar chupeta, ninguém a pode obrigar.

Se rejeita, em várias tentativas, determinado alimento ou consistência, forçar é contraproducente. É necessário paciência e esperar.

As suas escolhas verificam-se também nos brinquedos. Muitos pais bem-intencionados gastam fortunas em objetos que depois a criança não usa, preferindo as molas ou as tampas das panelas…

Uma criança tem por natureza uma grande curiosidade pelo mundo, tudo é novidade, está ávida por explorar, encanta-se com coisas simples. (Uma exceção para situações de atraso de desenvolvimento, as quais como disse devem ser devidamente referenciadas)

Mais tarde, sobrecarregar com excesso de atividades extracurriculares pode gerar grande ansiedade nas crianças e adolescentes, muitas vezes com insónias e sintomas psicossomáticos, como dores de barriga e de cabeça.

Muitas destas atitudes dos pais servem, inconscientemente, para diminuir sentimentos de culpa pela falta de tempo com os filhos.

Correrem para o hospital mal surge uma ‘pontinha de febre’ deriva de insegurança e medo, gerado muitas vezes pela sobrecarga de notícias sensacionalistas de doenças graves em crianças. (Existem, mas são muito pouco frequentes, e a febre, tal como o pingo no nariz, a tosse, a diarreia, são o ‘pão nosso de cada dia’ de uma criança na creche…)

Sintetizando, como referi no início, muitos pais circulam em modo automático numa espiral competitiva que infetou o nosso mundo, e que contagiou também a forma de serem pais.

Alguns já têm noção disso e começaram a mudar a forma de viver de um modo abrangente, incluindo em família, com benefícios evidentes para si e para os seus filhos.

Cada um é livre de decidir como quiser, mas fica aqui a minha opinião: Uma filosofia parental mais ponderada, que valorize as verdadeiras prioridades, mantendo o que é essencial para que uma criança seja saudável a todos os níveis, e excluindo o acessório, vai ter como frutos crianças mais felizes e pais menos ansiosos.

Para isso, é importante o apoio desde o início por um pediatra que oriente e apoie adequadamente os cuidados parentais, com o qual tenham empatia e sintam confiança para que os ajude a distinguir as verdadeiras prioridades, longe da “corrida” desenfreada pelo lugar cimeiro num pódio imaginário.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Comentar