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Ouvem-se os ecos da Nakba, a "catástrofe", no presente da Palestina
Em 1948, 700 mil palestinianos foram forçados a abandonar as suas terras, as suas casas, o seu modo de vida. Assim foi a Nakba, o "evento profundamente traumático" da memória colectiva palestiniana.
Em Novembro de 2023, Avi Dichter, membro do gabinete de segurança israelita e ministro da Agricultura, foi questionado por um jornalista, durante uma entrevista ao canal de televisão israelita Keshet 12 (Canal 12), se as imagens da fuga dos residentes do norte da Faixa de Gaza para o sul, após ordem de evacuação por parte da IDF, são comparáveis às imagens que dizem respeito à Nakba (que se traduz por “catástrofe”). Dichter respondeu: “Estamos agora a implementar a Nakba em Gaza." Mas o que é a Nakba? E por que razão é relevante no contexto no conflito que ocorre, presentemente, entre israelitas e palestinianos em Gaza e na Cisjordânia?
A ONU define a Nakba, ou a "Catástrofe", em português, como “desalojamento e expropriação maciços dos palestinianos durante a guerra Israelo-Árabe de 1948”. Nos meses que antecederam e que se seguiram à fundação do Estado de Israel, em Maio de 1948, cerca de 700 mil árabes deixaram para trás as suas casas e as suas terras. Com os seus poucos pertences, sobre camiões, carroças, ou a pé, centenas de milhares de famílias árabes – homens, mulheres, crianças e idosos – deixariam tudo o que tinham em busca de um lugar seguro. Encontraram-no na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e nos países árabes vizinhos, mas não mais puderam regressar a casa, reaver o que lhes pertencia, Israel não permitiu.
Entre 1948 e 1949, as aldeias e casas dos palestinianos foram destruídas ou reocupadas; as suas terras expropriadas. “A Nakba teve um impacto profundo nas pessoas palestinianas que perderam as suas casas, as suas terras e o seu modo de vida”, continua a ONU. “Permanece como um evento profundamente traumático na sua memória colectiva e continua a moldar a sua luta por justiça e pelo seu direito a regressar.”
Na Faixa de Gaza, em 2024 – três meses depois o início do conflito – cerca de 1.9 milhões de palestinianos vivem desalojados, mais de 21 mil civis perderam a vida (cerca dos quais sete mil são crianças) e há mais de sete mil pessoas desaparecidas que, com ou sem vida, estarão debaixo de escombros que resultaram de bombardeamentos israelitas. A fome, a desidratação, as doenças de cariz infecto-contagioso e o estado disfuncional dos hospitais, privados, à semelhança do resto do território, do fornecimento de electricidade, combustível, água, mantimentos, tornam Gaza praticamente inabitável. Apenas durante o primeiro mês de bombardeamentos, Israel lançou sobre Gaza mais de 25 mil toneladas de explosivos, o equivalente a duas bombas nucleares.
Muitos dirão que a Nakba já começou; outros aguardam a chegada do momento em que os palestinianos comecem a ser retirados do território para poderem invocar o retorno da "Catástrofe". Declarações como as do ministro da Segurança Nacional israelita, Itamar Ben-Gvir, de extrema-direita, que vê na emigração "voluntária" dos palestinianos de Gaza "a solução certa" para o pós-guerra, apenas reforçam o temor dos palestinianos. "Centenas de milhares sairiam agora, se pudessem", argumenta o ministro. Diante da extrema violência da operação militar israelita em Gaza e do discurso recorrente de incitamento à limpeza étnica proferido por membros do Governo israelita, a África do Sul acusou formalmente Israel de crimes de genocídio.
Ecos do passado ensombram o presente. Mas o que aconteceu, exactamente, entre 1947 e 1949? O que reduziu 700 mil palestinianos à condição de refugiados nesse período? Terão abandonado voluntariamente as suas casas – como argumentam sucessivos governos israelitas – ou ter-se-á tratado de um êxodo forçado, atiçado por violência ou ameaça, como defendem, até hoje, os palestinianos?
Ao longo da primeira metade século XX, sob o mandato britânico (1917-48), a Palestina atravessou momentos de grande convulsão social e política, provocados pelo crescimento de mais de mil por cento da população judaica em pouco mais de duas décadas. Em 1947, em resposta à complexidade do conflito que se havia formado na região, os Estados Unidos da América tornaram público o seu apoio à criação de um estado judaico e, poucos meses mais tarde, a 29 de Novembro do mesmo ano, a ONU levou à votação a Resolução 181, que dividiria a região da Palestina em dois estados – 55% do território a ser atribuído à comunidade judaica (para fundar Israel) e 45% à comunidade árabe (sob o controlo do Egipto e da Jordânia); Jerusalém seria governada por um regime internacional. Votaram a favor 33 países (entre eles os EUA, a URSS, França, o Brasil), 13 votaram contra (entre os quais o Egipto, a Síria, o Líbano, Irão, Iraque, Índia, Arábia Saudita ou a Turquia) e abstiveram-se dez países – o Reino Unido, a China, o México, Argentina, entre outros.
A comunidade árabe da Palestina, maioritária no território, opôs-se expressivamente, durante mais de duas décadas, à ocupação britânica, à imigração maciça de judeus e à fundação de um Estado judaico, por via de manifestações, greves gerais e episódios de conflito armado – a chamada Revolta Árabe. A ratificação da resolução da ONU, sem oposição ou resistência, traduzir-se-ia na oficialização da sua derrota. À semelhança do que havia ocorrido em 1917, ano em que o Reino Unido decidiu, unilateralmente, assumir o governo do território, o destino da Palestina estava, mais uma vez, entregue às mãos de terceiros, não às dos palestinianos.
Logo após a ratificação da Resolução 181, ainda em Novembro de 1947, a população judaica celebrou nas ruas a futura fundação do Estado de Israel, como é visível nas fotografias cedidas à Reuters pelo Governo israelita. O mundo árabe, sem surpresa, "rejeitou o plano [ratificado], argumentando que era injusto e que violava a Carta das Nações Unidas”, lê-se no site da ONU. A escalada de violência tornou-se iminente.
Vários ataques, que resultaram em centenas de mortos de ambos os lados, marcaram o início das hostilidades ainda em 1947. A 9 de Abril, membros de dois grupos paramilitares judaicos, Irgun e Lehi, irromperam pela aldeia de Deir Yassin, matando pelo menos 100 pessoas. Poucos dias depois, em retaliação, um grupo de árabes matou cerca de 80 israelitas que viajavam em direcção ao hospital universitário Rothschild-Hadassah.
A notícia do massacre em Deir Yassin, dias antes da proclamação de independência de Israel, tornou-se relevante ao “inspirar medo e pânico” entre parte da população árabe, que, temendo ver repetido o episódio noutras aldeias, se lançou em fuga do território. Os massacres repetiram-se, efectivamente, e o êxodo árabe intensificou-se. No dia seguinte à proclamação de independência de Israel, a 15 de Maio de 1948, os exércitos do Egipto, Iraque, Jordânia, Líbano e Síria, lançaram um ataque contra Israel. “A situação escalou para uma guerra total em 1948”, lê-se no site da ONU. Começava, para palestinianos, a Nakba, e, para israelitas, a Guerra da Independência.
Existem diferentes versões sobre o que aconteceu durante esse período de guerra. Sucessivos governos israelitas, desde a fundação, têm mantido a versão de que a esmagadora maioria dos árabes saiu de livre e espontânea vontade, por medo da guerra ou a pedido das autoridades árabes locais, que, supostamente, encarariam o êxodo como um passo estratégico na guerra que pretendiam travar. Porém, a desclassificação, na década de 1980, de alguns documentos dos serviços secretos israelitas contariam uma versão diferente da oficial.
Um desses documentos, que data de 30 de Junho de 1948 e que está disponível para consulta online (e que foi já citado pelo Washington Post, Monde Diplomatique e pelo Haaretz), revela que, "sem dúvida, as hostilidades foram o principal factor motivador da movimentação da população" e enumera as muitas acções levadas a cabo por judeus e israelitas nesse sentido. Elas vão desde “acções hostis contra as comunidades árabes” pelas IDF e dissidentes dos grupos militares Irgun e Lehi, “operações de rumor (guerrilha psicológica)”, “ultimatos para evacuações”, a isolamento de aldeias [árabes] em zonas de maioria judaica. “A evacuação de determinadas aldeias [árabes] resultou do nosso ataque e esvaziamento das aldeias [árabes] vizinhas”, especifica o relatório.
É possível afirmar, a partir da análise do documento, que 70% dos 700 mil árabes que abandonaram o território israelita entre 1 de Dezembro de 1947 e 1 de Junho de 1948 o fizeram em resultado de operações judaicas e israelitas – e que apenas 5% do êxodo é atribuído, pelos serviços secretos, às ordens dadas por líderes árabes a cidadãos árabes. “O elemento surpresa, longos bombardeamentos com explosões muito ruidosas e anúncios, em árabe, transmitidos em altifalantes revelaram-se muito eficazes quando utilizados correctamente”, lê-se no documento.
Pode imaginar-se, à luz da descrição que consta do relatório, o que poderá ter conduzido ao êxodo maciço da população árabe. As fotografias fornecidas pela UNRWA ao P3, a partir do escritório na Faixa de Gaza, em conjunto com as que a Reuters guarda no seu arquivo, ajudam a enquadrar, visualmente, os acontecimentos. Sem abrigo, comida, em trânsito forçado, em guerra, centenas de milhares ficaram dependentes da acção de organizações humanitárias para garantir a sua sobrevivência.
A guerra durou nove meses, três semanas e dois dias, e terminou a 10 de Março de 1949, na sequência de um armistício negociado por Israel com cada um dos países envolvidos na ofensiva. Embora a nação judaica estivesse em posição de inferioridade numérica (estava, contudo, mais bem organizada, mais bem equipada e treinada, motivada e financiada do que os seus adversários, segundo o historiador israelita Benny Morris), da guerra resultou a expansão do seu território – os 55% do território da Palestina que lhe haviam sido atribuídos pela ONU transformaram-se, ilegalmente, em 78%. Até hoje permanecem sob controlo de Israel.
Em solo israelita, no pós-guerra, permaneceram apenas cerca de 150 mil árabes. “A maioria passou a residir em aldeias da zona oeste da Galileia”, escreve a Britannica. “Porque a maior parte das suas terras foi confiscada, eles [os árabes] foram forçados a abandonar a agricultura e a tornarem-se operários não especializados da indústria judaica e em empresas de construção civil.”
Ainda em Dezembro de 1948, com a Nakba em curso, a Organização das Nações Unidas tomou medidas para assegurar a protecção dos direitos dos refugiados palestinianos e ratificou a Resolução 194 (II), para que pudessem regressar às suas casas, às suas terras, em segurança e em pleno direito. A ONU afirma que “75 anos depois, apesar das incontáveis resoluções, os direitos dos palestinianos continuam a ser negados”.