Do espectáculo, às palavras: app de audiodescrição torna eventos mais inclusivos
Com a app Interactio as cenas no palco da Altice Arena também chegam a quem tem deficiência visual. O PÚBLICO foi perceber como transformar em palavras o que foi planeado para ser visto.
E se assistisse a um espectáculo sem ser por meios visuais, mas através do que lhe contam ao ouvido? Com vista a tornar os eventos culturais e de entretenimento mais inclusivos, a Altice Arena começou a utilizar uma nova app: a Interactio. A missão é garantir que quem tem deficiência visual também pode assistir e viver da magia do mundo da arte em tempo real.
O processo depende da voz de uma intérprete de audiodescrição que não faz parte da equipa que se vai apresentar em palco, mas também irá actuar com eles ao acompanhar e narrar a história. “Procuro o que tem maior valor em termos de história, estética e espectáculo técnico”, explica ao PÚBLICO a intérprete Josélia Neves, cerca de uma hora antes do arranque de Ovo, a mais recente história do Cirque du Soleil a passar pela Altice Arena.
Durante a conversa, os preparativos sonoros e o jogo de luzes que compõem o espectáculo contrastam com o ambiente que se vive na despercebida reggie da maior sala de espectáculos do país. Lá, o silêncio é quase total e a única luz presente é a do computador que servirá de base ao serviço de audiodescrição, disponível na app Interactio. Josélia tenta concentrar-se. “O circo vive da magia e do faz-de-conta, e é aí que entra também o trabalho poético que chega às pessoas”, detalha.
A intérprete portuguesa faz parte do AAA — Access All Areas (Acesso a todas as áreas, em português), um projecto da Access Lab, uma empresa criada para proporcionar uma maior equidade das pessoas surdas e com deficiência no acesso à cultura.
Irina Francisco, de 36 anos, é uma das beneficiárias. Vive desde sempre com apenas 5% de visão, na sequência de uma doença congénita. Depois de ter feito parte do projecto-piloto anterior, o Ovo é a primeira experiência de circo ao vivo. “Tecnicamente, este mecanismo é muito acessível”, refere, e “funcionou muito melhor do que na primeira vez”.
A trabalhar actualmente na adaptação de manuais escolares para braille, no Ministério da Educação, Irina considera que nos últimos anos a oferta de espectáculos com audiodescrição “tem vindo finalmente a crescer”, apesar de ser ainda muito centralizada nas zonas de Lisboa e do Porto.
Questionada acerca das particularidades de adaptar um espectáculo de circo, a interprete Josélia Neves afirma que esta preparação “está a ser das mais complexas”: teve de compreender a técnica da ginástica circense, com o espectáculo a viver do movimento e não existindo diálogos ao longo dos 90 minutos. Não lhe foi possibilitado assistir aos ensaios da equipa do Cirque du Soleil, por isso fez-se valer da análise de vídeos já existentes e do que recolheu na primeira sessão da apresentação. “Analisei os segredos de como é que um trapezista consegue voar seis metros, por exemplo, ou quais são os músculos do corpo [usados] para que as pernas se ergam e abram em tesoura”, explica a intérprete.
"A audiodescrição não deveria ser apenas para pessoas com deficiência visual, mas para todos", diz Josélia Neves. "Chamamos a atenção para determinados pormenores. Todos estes serviços tornam o mundo mais acessível a todos."
Um serviço “mais leve”
No início dos projectos-piloto realizados entre a Access Lab e a Altice, a audiodescrição era feita com um sistema de rádio, explica o co-fundador da Access Lab, Tiago Fortuna. No entanto, era necessária “uma fórmula mais autónoma para as pessoas e para a própria sala de espectáculos”. O sistema anterior era de transmissão simultânea de rádio, semelhante aos utilizados em conferências. Nesta nova fórmula, existe uma redução na latência (o tempo que os dados demoram a passar de um ponto de rede para o outro) e não são necessários equipamentos adicionais, ou seja, a mensagem chega muito mais rápido ao receptor, que pode usar o seu próprio telemóvel.
Todos os dados são armazenados na nuvem (cloud). Com este tipo de infra-estrutura, os dados ficam numa “nuvem” de servidores, acessíveis a partir de qualquer dispositivo com ligação à Internet. Para além de acesso remoto, os sistemas cloud também permitem aceder aos conteúdos através de aplicações mais “leves” que não ocupam tanto espaço nos telemóveis.
Para usufruir dos serviços de audiodescrição da Altice, o público que pretende ter acesso deve contactar a equipa de acessibilidade da Altice, através do email (acessibilidade@aarena.pt), para que lhes seja fornecido um link próprio de acesso à app e um código para aceder ao espectáculo que pretende assistir. O serviço está disponível para qualquer pessoa que adquira o bilhete e é gratuito.
Além do serviço de audiodescrição, a Altice apresenta ainda projectos com coletes sensoriais e interpretação em língua gestual portuguesa para pessoas surdas e foram criadas sessões de audiodescrição para pessoas com deficiência visual.
Texto editado por Karla Pequenino