Quando os animais morreram, eles gravaram-nos na pele para sempre
Servem como homenagem, uma forma de os “levar sempre no braço” (ou na perna, ou noutro sítio qualquer). As tatuagens de animais são cada vez mais populares – e, para alguns, ajudam no processo de luto
É mais um dia normal no Fat Cat Tattoo. Depois da pausa para almoço, a porta do estúdio na Rua da Estação, a poucos passos de Campanhã, no Porto, abre-se para mais uma tarde de trabalho.
Luna Miranda, 32 anos, prepara-se para tatuar mais um retrato de um animal de estimação. Desde que começou a fazer tatuagens, há 15 anos, já soma mais de 60 retratos. A conta é feita de cabeça, enquanto prepara o material para dar início a mais um trabalho. É possível que o número real seja superior.
Desta vez, é o focinho de King, um boxer de 13 anos adoptado por Francisca Ribeiro, 27 anos, que está deitada à espera de ver o retrato ganhar forma. “Gosto mesmo muito de fazer isto. Estes trabalhos de pormenor e de paciência”, diz Luna, enquanto vai terminando os primeiros traços e olhando para a fotografia de King, impressa numa folha A4. O microrrealismo já é imagem de marca.
“Quis fazer esta tatuagem porque vou este ano trabalhar para França. Assim, vou levá-lo comigo no braço”, conta Francisca. É que King não é um animal de infância — cresceu com uns vizinhos de Francisca e, quando o dono morreu, sendo um cão conhecido por ser agressivo, encontrar uma nova família revelou-se difícil.
“A verdade é que eu conhecia o King desde que era pequenina e tinha medo dele”, admite. Contudo, desde a adopção, não houve sinais de agressividade. Para Francisca, isso sugere que o problema estava na forma como era tratado: “A anterior família tinha também um pinscher e os cães eram tratados de forma diferente. O King ficava lá fora”, exemplifica.
Na casa que o acolheu há cerca de três anos, King é parte da família. Nestes que são, provavelmente, os seus últimos anos (a esperança média de vida de um boxer é de dez a 12 anos), tem sempre companhia. Ora de Francisca e do irmão, ora da avó. “Neste momento, quem passa mais tempo com ele é a minha avó”, revela. Reformada, a matriarca passa mais tempo em casa e, “como ele está velhinho, passam os dias a dormir os dois”, diz com uma gargalhada.
Deitada na marquesa e entretida com o telemóvel, Francisca vai espreitando a evolução da tatuagem. O rosto de King começa a ficar mais evidente na pele. “Também podia ter feito uma tattoo só da orelha dele. É uma característica muito particular — tem sempre a orelha para cima”, atira.
A conversa com Luna também ajuda o tempo a passar. Para este pequeno retrato de, aproximadamente, oito centímetros são precisas cerca de duas horas.
Tatuar animais de estimação “começou em resposta a pedidos que foram surgindo”, explica a tatuadora de 32 anos. Como “trabalhava com uma agulha mais fina do que o normal”, decidiu “experimentar o realismo porque é algo que com esta agulha funciona muito bem”. E tornou-se imagem de marca, como denuncia o perfil de Instagram, repleto de rostos caninos e felinos.
A experiência diz-lhe que as pessoas que escolhem gravar o animal de companhia na pele são, regra geral, inexperientes nestas andanças. “Há pessoas que fazem a primeira tatuagem por causa do significado e acaba por estar ligada a um animal. Como o significado é muito forte, têm mais a certeza de que não se vão arrepender”, argumenta.
O amor pelos animais é denominador comum
Luís Nogueira, tatuador com estúdio instalado em Valongo, a poucos quilómetros do Porto, dá uma razão diferente. Para ele, o denominador comum entre quem homenageia os animais com uma tatuagem é mesmo “o facto de [as pessoas] adorarem os animais e quererem representar isso no próprio corpo”.
O tatuador de 41 anos já perdeu a conta aos trabalhos do género que fez. E há detalhes que lhe ficaram na memória: “Já houve quem chorasse, não pela dor da tatuagem, mas pelo significado. Torna-se um momento bonito”, relata, de olhos postos no retrato que vai desenhando na perna de Ricardo Leite, 38 anos.
Para o ex-pára-quedista, a dor da agulha não é comparável à que sentiu em Agosto do ano passado, quando perdeu o bulldog francês Marley. “É a primeira vez que falo disto abertamente”, confidencia. Até agora, o luto foi feito em silêncio.
A morte foi repentina: no dia em que a família ia de férias, Marley saltou para o banco de trás do carro e partiu o cotovelo. Durante o internamento, a anestesia necessária à operação acabou por não ser suportável para o animal. “Custou-me muito aceitar porque era um cão saudável e ainda só tinha oito anos”, conta, ainda inconformado.
Cinco meses depois, reconhece que Marley o “vai marcar para sempre”. De tal forma que “agora fica marcado na pele, tal como tenho a minha filha ou algumas coisas alusivas à tropa”. “Para mim, faz todo o sentido.”
O retrato de Marley, numa Polaroid e com uma coroa na cabeça, “porque era o rei da casa”, vai-se preenchendo. Com apenas dez centímetros, mas muito pormenor, é um trabalho para cerca de três horas. “Nós temos muito a aprender com os animais. Nós somos tudo para eles toda a vida e, no entanto, o Marley nunca pedia nada em troca”, diz enquanto espera pelo resultado final.
Ricardo é um dos clientes mais antigos de Luís Nogueira — e isso pode ver-se nos braços e nas costas, repletos de trabalhos com a assinatura do tatuador valonguense. Começou a tatuar algures em 2011: “Já gostava de desenhar, fazia pintura sobre tela e sempre alimentei o meu lado artístico”, detalha.
O realismo — para homenagear animais de estimação que já partiram ou replicar fotografias de pessoas especiais, por exemplo — é um dos estilos mais evidentes no portfólio de Luís, mas também há espaço para fine line e sacred geometry.
Sobre o processo criativo, tudo começa com as fotografias, tanto para Luís, como para Luna. Um ponto essencial é o contraste entre tons claros e escuros, que “enriquecem a tatuagem” e “dão realce”, descrevem. E porque o trabalho dos tatuadores não se faz apenas na pele, as fotografias são tratadas em Photoshop e Procreate, para, através do desenho digital, criar a imagem que vai ficar gravada.
Uma ajuda para fazer o luto
Também para Dami Paiva, 28 anos, acolher uma nova tatuagem fez parte do processo de luto. “Sinto-me sempre muito feliz quando olho para esta tatuagem porque me transporta automaticamente para uma altura muito feliz da minha vida”, diz, a propósito do retrato que tem de Tequila, feito por Luna Miranda.
Cruzada de american pitbull terrier, Tequila tinha sido resgatada pela associação Animais Vila Nova de Gaia e suspeita-se de que tenha sido vítima de abusos sexuais. Quando chegou até Dami, “tinha um tumor de quase dois quilos e uma corrente quebrada no pescoço”, além de comportamentos agressivos, fruto de eventuais agressões.
As primeiras idas ao veterinário deram conta de “um cancro inoperável”. O tempo que lhe restava foi aproveitado da melhor forma possível: “Todos os dias brincava, passeava, era feliz, apesar do problema de saúde”. Acabou por morrer um ano depois da adopção, aos nove anos.
Depois da perda, Dami reconhece que não conseguiu “fazer o luto de forma saudável”. “Carregava as cinzas para todo o lado”, relembra. Foi assim que surgiu a ideia de fazer uma tatuagem: “Acabei por escolher uma foto dela a fazer algo que fazíamos todas as semanas: correr ao pé do rio.”
Para a jovem, que é hoje voluntária na associação que acolheu Tequila e família de acolhimento temporário de outros animais, estas linhas são agora “uma forma de exteriorizar o amor por ela”, o seu "vínculo” e, de uma forma mais geral, o “amor pelos animais”. Para Dami, Francisca e Ricardo, eles partiram, mas ficaram gravados na pele para sempre.