Etiópia desata uma crise no corno de África para ter acesso ao mar

Presidente somali denuncia “o flagrante desprezo pelas normas internacionais” de Adis Abeba ao assinar um acordo com a província semi-autónoma da Somalilândia. Organizações internacionais preocupadas.

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Manifestação de protesto em Mogadíscio contra o acordo entre a Etiópia e a Somalilândia FEISAL OMAR/Reuters

O Parlamento da Somália aprovou uma lei para invalidar o memorando de entendimento alcançado entre a Etiópia e a região semi-autónoma da Somalilândia, que concede acesso a Adis Abeba às águas do mar Vermelho em troca do reconhecimento da autoproclamada independência deste território, um acordo muito criticado por Mogadíscio e alvo de protestos multitudinários esta quarta-feira na capital somali.

As duas câmaras do órgão legislativo realizaram uma reunião conjunta na noite de terça-feira para discutir o acordo, descrito como "falso e ilegal" pelos deputados, que insistiram que "as águas e o território da Somália não serão postos em perigo".

"Sempre defendemos a nossa integridade territorial e soberania, e exerceremos os nossos direitos exclusivos, de acordo com o direito internacional", afirmou durante a sessão o Presidente somali, Hassan Sheikh Mohamud. "Protegeremos cada centímetro da nossa sagrada terra e não toleraremos tentativas de apropriação ", advertiu o mandatário, segundo extractos do seu discurso publicados na rede social X (antigo Twitter) pela própria presidência.

Sheikh Mohamud denunciou "o flagrante desrespeito pelas normas internacionais" por parte da Etiópia e alertou que este movimento "nulo e inválido" poderia "ressuscitar elementos extremistas e prejudicar os recentes avanços internacionais no domínio do contraterrorismo", referindo-se ao grupo jihadista somali Al-Shabab, criado em 2004 e vinculado à Al-Qaeda desde 2012.

O porta-voz do grupo, Ali Mohamud Rage, conhecido como 'Ali Dhiri', classificou o acordo como "ilegal" e "inválido" e ameaçou combater as forças da Somalilândia por causa da assinatura deste pacto, de acordo com a emissora Voz da América.

Sem fazer referência directa a essas declarações de Rage, divulgadas em áudio através de canais de propaganda do Al-Shabab, o chefe de Estado mencionou a possibilidade de que o pacto "ressuscite elementos extremistas" e que os jihadistas possam usar o acordo como via de legitimação e forma de arregimentar mais gente para as suas fileiras.

Posteriormente, a Presidência somali enfatizou, em comunicado publicado no Facebook, que "a Constituição da Somália contempla a soberania e a unidade da Somália e concede ao Governo federal a capacidade de firmar acordos internacionais", destacando que as autoridades de Somalilândia não teriam essas competências à revelia do Governo federal.

"Os tratados das Nações Unidas, da União Africana (UA) e da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD), concernentes à soberania política e à integridade territorial dos Estados-membros, não podem ser violados", afirmou peremptoriamente.

Por isso, insistiu que o Parlamento "está claramente contra a violação da soberania e da unidade da Somália e do seu povo por parte da Somalilândia", e confirmou a aprovação da mencionada lei para "anular o conteúdo do memorando de entendimento entre a Etiópia e Somalilândia".

"O Parlamento apoia integralmente o Governo Federal da Somália no cumprimento das suas obrigações constitucionais de proteger, preservar a dignidade, a honra, a integridade territorial e a unidade do povo do nosso país", disse. Na terça-feira, o Governo somali chamou para consultas o seu embaixador na Etiópia, numa demonstração de protesto.

Esta quarta-feira, o Presidente somali pediu a todos os cidadãos, "especialmente à população de Somalilândia", que "se unam para preservar a dignidade, a independência e a unidade da nação somali".

Respondendo a esse apelo, milhares de pessoas manifestaram-se em Mogadíscio, tendo o presidente da câmara da capital somali, Yusuf Hussein Jimaale, discursado para todos aqueles que se juntaram num estádio de futebol da cidade, segundo o portal noticioso Goobjoog News.

Acesso ao mar

Entretanto, do outro lado, o gabinete do primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, descreveu o memorando de entendimento com a Somalilândia como "histórico" e especificou que "deve abrir caminho para concretizar a aspiração da Etiópia de obter acesso ao mar e diversificar as suas rotas para os portos, ao mesmo tempo que fortalece a sua parceria económica, política e de segurança".

"O memorando de entendimento também aponta o caminho para fortalecer as suas relações políticas e diplomáticas", destacou, enquanto o presidente da região semi-autónoma somali, Muse Bihi Abdi, enfatizou que o memorando de entendimento significa que "a Etiópia reconhece oficialmente a República da Somalilândia, enquanto a Somalilândia concede acesso naval e comercial à Etiópia em carácter de empréstimo por um período de 50 anos".

As autoridades da Somália não reconhecem a independência de Somalilândia (declarada em 1991 e não aceite por nenhum país do mundo), mas o acordo chega numa altura em que havia sinais de aproximação entre as duas partes.

O Governo etíope assegurou, esta quarta-feira que “não houve quebra de confiança e nenhuma lei foi violada”. E que, “embora estes sejam os factos, não se pode dizer que algumas pessoas não tenham ficado ofendidas, chocadas e evitem destruir este progresso positivo", lê-se numa declaração na rede social X. Para Adis Abeba, o acordo "cria uma oportunidade para curar décadas de stress e ansiedade para os etíopes" e é "um acontecimento histórico que deixa os etíopes felizes".

"É também um acontecimento que deve satisfazer todos os etíopes e amigos da Etiópia, bem como os membros da comunidade internacional que desejam que a paz reine na região", disse o executivo, acrescentando que "os activos naturais da região são mais do que suficientes para todos" e que o acordo "é a prova da convicção do Governo em realizar as aspirações da Etiópia através da cooperação com os seus vizinhos".

Ao fazê-lo, o executivo etíope sublinhou que esta posição "está firmemente enraizada no desejo de não entrar em guerra com ninguém" e "de garantir que as opções procuradas são mutuamente benéficas para todos". "Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para explicar a nossa posição àqueles que podem e estão dispostos a ouvir", sublinhou.

"O memorando recentemente assinado (...) reflecte os esforços feitos por ambas as partes para reforçar a sua amizade e responder a questões históricas de ambos os lados", explicou, sublinhando que, "a longo e médio prazo, bem como na história recente", o país "tinha acesso directo ao mar".

"Devido a questões longínquas e próximas, perdemos esse acesso e recuperámo-lo mais tarde. No final, houve uma guerra civil que durou três décadas, alimentada por uma crise interna e uma conspiração externa", argumentou, antes de salientar que, após a guerra, "devido a um erro histórico e jurídico", "o país ficou sem acesso ao mar". A independência da Eritreia em 1993 deixou a Etiópia sem acesso ao mar, mas em 2018 os dois países assinaram um acordo que permite a Adis Abeba usar os portos no mar Vermelho.

A Etiópia recordou ainda que a Somalilândia "recuperou a sua independência em 26 de Junho de 1960", depois de ter estado sob domínio britânico, acrescentando que "cinco dias mais tarde, a Somalilândia juntou-se voluntariamente a Mogadíscio, que tinha acabado de conquistar a sua independência de Itália".

"Em 1991, a Somalilândia voltou a declarar a sua independência e, desde então, pratica a democracia há 30 anos, realizando eleições e transições pacíficas de poder", apesar de continuar a não receber "o pleno reconhecimento" da comunidade internacional.

IGAD e UE preocupadas

Palavras que não convenceram a IGAD, a organização regional de que fazem parte Etiópia e Somália, que manifestou na quarta-feira a sua "profunda preocupação" com o possível impacto na "estabilidade regional" das tensões entre a Etiópia e a Somália, de acordo com um comunicado publicado no seu site.

O secretário-geral da IGAD, o etíope Workneh Gebeyehu, manifestou a sua "profunda preocupação com os recentes desenvolvimentos nas relações entre a Etiópia e a Somália" e sublinhou que a IGAD está a "acompanhar diligentemente a situação", reconhecendo ao mesmo tempo "as potenciais implicações para a estabilidade regional".

O presidente do Conselho apelou aos "dois países irmãos" para que "trabalhem em conjunto para uma resolução pacífica e amigável da situação, respeitando os valores partilhados que unem a família IGAD", antes de sublinhar que a organização "continua firme no seu compromisso de promover a paz, a estabilidade, a cooperação e a integração regional".

Também a União Europeia está preocupada com a situação. O Serviço Europeu para a Acção Externa emitiu um comunicado "a recordar [ao Governo etíope] a importância de respeitar a unidade, a soberania e a integridade territorial da República Federal da Somália, em conformidade com a sua Constituição e com as Cartas da União Africana e das Nações Unidas".

Para Bruxelas, o respeito por estes preceitos "é fundamental para a paz e a estabilidade de toda a região do Corno de África".

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