Diversos amigos partilharam comigo uma sensação de inquietação nesta quadra natalícia. O novo normal, o momento pós-pandémico, o futuro prometido, é afinal um tempo de desconforto que parece ter derrubado as paredes sólidas e seguras do convívio familiar.
A nível internacional, a guerra e o sofrimento estão de regresso, tornando-se um lugar comum nos noticiários nacionais e uma presença constante na nossa consciência colectiva.
Na Ucrânia, contabilizam-se mais de 11 mil mortos e na faixa de Gaza mais de 20 mil mortos, sobretudo crianças e mulheres. Se os líderes mundiais se revelaram inaptos para garantir a paz e os direitos humanos, na sequência de um vírus que vitimou mais de seis milhões de pessoas, no plano interno, o contexto é também cada vez mais desolador.
Em Portugal, a taxa de risco de pobreza subiu para os 17% após transferências sociais. Isto significa que os fenómenos de privação ou exclusão social afectam agora 2,1 milhões de portugueses, incidindo com especial intensidade nos principais centros urbanos.
Em Lisboa e no Porto, considerados enquanto mero produto e cenário turístico, as poucas coisas que parecem germinar são os preços da habitação, os pastéis de nata e uma multidão indiscriminada de turistas servidos por um batalhão de empregados precários.
Em particular de imigrantes que vivem em condições degradantes. No plano económico, os sucessivos governos cooptados pelas dinâmicas globais de crescimento económico ficaram reféns das estratégias que privilegiaram a competição internacional face à coesão interna, sobrevalorizando sectores incertos como o turismo ou o mercado imobiliário face a outros sectores económicos igualmente cruciais para o desenvolvimento do país.
O recuo dos serviços e das respostas públicas apesar da elevada carga fiscal, a inflação galopante, os preços estratosféricos do mercado imobiliário, o risível crescimento das remunerações salariais, a precarização dos vínculos laborais agravaram a situação de desespero dos cidadãos e das famílias que se debatem desde 2008 com as consequências de crises sucessivas: o colapso financeiro, a pandemia global e mais recentemente os conflitos mundiais.
Se a isto somarmos a nebulosa dos interesses e o circo político e mediático, cada vez mais distante dos reais problemas das pessoas, obtemos um espectro de sintomas que explicam, em grande medida, os tempos de ansiedade e desânimo que pressentimos na espuma dos dias.
Andamos a "viver mal" e este oceano de descontentamento que resulta do divórcio entre o funcionamento da economia, a prática política e o bem-estar social é uma ameaça à democracia.
Desde o colapso do governo que as estatísticas apontam para o crescimento da extrema-direita. Impedir o seu avanço implica olhar para o avolumar das camadas de população e dos territórios que assistem ao sufoco das suas condições de existência, conferindo-lhes uma nova centralidade no âmbito das políticas públicas e das estratégias de desenvolvimento do país.
Os jogos de poder internacional que se escondem na sombra dos grandes conflitos mundiais, as fracturas expostas da desigualdade e os grupos oportunistas que as pretendem explorar em benefício próprio, impõem mais do que nunca a nossa união enquanto sociedade diversa e democrática, capaz de pensar colectivamente o futuro e exigir no plano político a inversão de tendências que condenam os povos e os seus quotidianos.
Aprendemos com a pandemia de covid-19 que uma sociedade mais igualitária, coesa e solidária é o atalho mais eficaz para nos resgatar da incerteza e da vulnerabilidade. Será certamente também a fórmula mais útil para impedir que o obscurantismo destrutivo da história regresse, semeando a guerra, o sofrimento, a desigualdade e a miséria ao mesmo tempo que saqueia aquela que é a nossa fortuna mais valiosa: viver em paz, em liberdade e sem desconforto, seja no dia de Natal, seja no resto das nossas vidas.