Aqueles que da lei da morte se vão libertando

O esquecimento é uma das maiores armas num conflito. Se nos esquecemos do conflito em si e, principalmente, das suas vítimas estamos a dar luz verde para que possa continuar o seu curso normal.

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Megafone P3: Aqueles que da lei da morte se vão libertando EPA/HAITHAM IMAD

Durante o meu ensino básico, lembro-me de ter sido confrontado com um trecho d'Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, o mais célebre de todos os poetas portugueses, que se referia a um certo tipo de pessoas: “Aqueles que por obras valorosas/ Se vão da lei da morte libertando”.

Lembro-me da minha professora de português nos questionar sobre a nossa interpretação acerca deste texto. Depois de algumas opiniões e de alguma análise textual, chegámos à conclusão de que há pessoas que são obreiras de feitos tão bons e tão magníficos, que se imortalizam na história e que, após falecerem, o seu nome, a sua obra e a sua vida jamais serão esquecidos.

Esta ideia ficou, até hoje, presente na minha mente e, neste período do ano tão nostálgico, sinto que todos nós relembramos as pessoas que fizeram a diferença na nossa vida (mesmo que, por vezes, nos esqueçamos daquilo que significam para nós). Infelizmente há pessoas que não têm quem se possa lembrar delas e que caem no tenebroso esquecimento da “lei da morte”.

Actualmente, dia após dia, dezenas ou centenas de pessoas são mortas na Faixa de Gaza por mísseis, pela fome ou pela falta de medicamentos e outras tantas israelitas encontram-se em cativeiro às mãos do Hamas. Na Ucrânia, centenas de famílias, mês após mês, vão retirando cadeiras nas mesas de jantar. E no Sudão do Sul, dezenas de raparigas e mulheres são, dia após dia, vítimas de horrendos crimes de violência sexual.

Estes são apenas alguns exemplos de situações onde, sem qualquer tipo de legitimidade ou razão, pessoas perdem a vida ou os seus direitos são violentados. No entanto, essas pessoas e as suas histórias são compactadas, pelos nossos órgãos de comunicação social, em meros números ou notícias de rodapé, levando-nos a efectivamente sentir que nos encontramos informados, a reflectir brevemente sobre a questão e a sentirmo-nos momentaneamente tristes perante tal notícia. Não obstante, em seguida, com azáfama da vida moderna, esquecemo-nos de que são pessoas e famílias que não conseguem sentir nada na sua pele a não ser a violência e o sofrimento a que estão submetidas.

Com efeito, o esquecimento é uma das maiores armas num conflito. Se nos esquecemos do conflito em si e, principalmente, das suas vítimas e das suas histórias, estamos a dar luz verde para que possa continuar o seu curso normal, permitindo a manutenção da violência, do sofrimento e da morte, porque ninguém se encontra suficientemente informado e atento. No entanto, se priorizarmos a memória e nos lembrarmos das vítimas e das suas histórias, afirmamos que nos importamos e que não nos esquecemos do sofrimento dos civis e daqueles que faleceram, levando a que os países onde a paz se alarga aos seus territórios e aqueles que podem fazer efectivamente algo no sentido da redução ou mitigação da violência não escolham, conscientemente, esquecer as vítimas e o seu sofrimento.

Sei que muitas vezes nos consideramos seres completamente impotentes, reconhecendo que a nossa área de actuação perante o sofrimento de tantos milhões de pessoas é extremamente reduzida ou até nula. Também me sinto assim. No entanto, além das importantes doações às organizações competentes, ainda há mais uma coisa que podemos fazer: ajudar estas pessoas a libertarem-se da “lei da morte”, a garantir que, apesar de terem perdido a sua vida, a sua existência não será apagada pelo esquecimento.

Por isso, urge gritar o nome de todas as crianças, mulheres e homens, assolados pela violência promovida por conflitos injustificáveis e desumanos e afirmar: eu não me vou esquecer e não me conformo perante esta situação. Se não nos esquecermos destas pessoas, nós, enquanto humanidade, jamais poderemos voltar as costas perante as suas vidas e as suas histórias.

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