Arcos, Barca e Bouro: copos, malgas, céus estrelados e o traço perfeito da natureza
Num momento, estamos a provar vinhos, a erguer o copo, a pintar a malga; noutro, paramos só a contemplar garranos à solta. Viagem lenta por Ponte da Barca, Arcos de Valdevez e Terras de Bouro.
O que não pode faltar na mala de uma mulher? Desengane-se quem pensou no clássico batom: estamos em Ponte da Barca, terra de Vinhos Verdes, presença tão forte que há quem carregue consigo, não um, mas dois saca-rolhas. Esse alguém é Sílvia Resende. Trabalha na Barcos Wines - Adega de Ponte da Barca e Arcos de Valdevez, como gestora de clientes, e habitou-se a ter pelo menos um saca-rolhas em cada mala, para qualquer eventualidade, seja uma prova de vinhos ou um jantar de amigas. “Em lazer também dá jeito”, comenta. Rimo-nos, e o gelo derrete-se ainda antes de erguido o primeiro copo – ou malga.
Com 60 anos celebrados recentemente, aquela adega cooperativa orgulha-se do seu legado, sem tirar os olhos do futuro. Conta com uma gama de vinhos muito diversa, e até criou um departamento de inovação, tal o empenho em ir lançando produtos “disruptivos”, para usar o termo de Bruno Almeida, director de marketing, inovação e I&D. Ainda neste ano saiu uma colecção de vinhos naturais (baptizada de 6000 a.c.). Antes, a Adega já se havia juntado à Cerveja Letra para produzir a colecção Cervejola, uma trilogia de cervejas vínicas. E tem no catálogo desde vinhos em lata até chocolates artesanais. Trufas de vinhão? Bombons de Cervejola? Está tudo na loja online.
Actualmente, a Adega de Ponte da Barca e Arcos de Valdevez produz sete milhões de garrafas por ano. O volume de negócios cresceu 175% nos últimos quatro. Exporta mais de 75% da produção, segundo Bruno Almeida. Face ao peso do mercado externo e às dificuldades de comunicação resultantes de ter um nome tão comprido, adoptou-se uma designação mais simples, alusiva aos dois concelhos e à história e património locais: Barcos Wines.
Não estando apta a receber visitantes nas suas instalações, pelo menos por agora, a Adega disponibiliza programas de enoturismo que aliam provas de vinhos a actividades ao ar livre, em parceria com agentes locais. É o caso da Eco4Adventure, empresa de animação turística e aventura que nos leva num passeio de jipe tendo como pano de fundo os três vales abastecedores da Adega: Lima, Vade e Vez. Partimos do centro de Ponte da Barca, andamos um par de quilómetros e já estamos no mundo rural.
A primeira paragem é no Alto da Pegadinha, com capela, mesas de piquenique e belas vistas. Atravessamos aldeias ligadas à produção de Vinhos Verdes de cara colada à janela, recolhendo imagens de espigueiros, lavadouros públicos, cães deitados nas pedras aquecidas pelo Sol, vacas a circular entre as videiras ou a acompanhar, pachorrentas, o dono, que procede a uma queimada.
“Aqui, pratica-se o slow living“, diz o fundador da Eco4Adventure, Luís Fernandes, ao volante do jipe, que por vezes imobiliza perante um obstáculo na estrada – pode ser uma viatura parada ou um animal indiferente a quem vem da cidade com tiques de corredor. Estamos na freguesia de Sampriz, subimos agora em direcção ao Castelo da Nóbrega, miradouro localizado a 730 metros de altitude, para admirar a panorâmica – verdadeiro presente dos céus, num dia tão limpo.
Nesta pausa, Luís conta como, sendo engenheiro mecânico, escolheu dedicar-se ao turismo. Ainda dá aulas de manutenção industrial, mas já o disse e repete: “Ir à montanha uma vez por semana é como ir ao psicólogo”. Apresenta-se como um “defensor do território”, que dá a conhecer sem artificialismos, sendo capaz de adaptar a rota, na hora, aos interesses de cada visitante. Ocorre-lhe, a esse propósito, um passeio em torno do património que fez com um grupo de senhoras vindas do Canadá: “Passámos num cemitério, quiseram entrar, fomos vê-lo. E a seguir, dentro do roteiro que íamos fazer, parámos em todos os cemitérios.”
Os programas feitos em colaboração com a Adega podem estender-se por duas horas e meia, um dia ou dois. Escolhemos o mais curto, que soma à viagem de jipe uma prova. Decorre, geralmente, no Solar do Vinhão, mas também pode ter como cenário a quinta de um dos associados – desta feita, as Vinhas de Cypriano. É, enfim, altura de Sílvia Resende puxar do saca-rolhas e dar a experimentar alguns vinhos da cooperativa, uns produzidos com uvas da casta branca loureiro, outro com uvas da tinta vinhão. É o Fedelho Vinhão Premium 2023, que se bebe pela tradicional malga, logo pintada de tons rubi. Já em jeito de despedida, deixa uma nota: o vinhão vai bem com pratos tradicionais, como cabidela, rojões, cabrito ou cozido à portuguesa. Estamos no sítio certo.
Vinhas, castanheiros e prémios Pritzker
Oportunidades para saborear aquelas e outras delícias não faltam, neste canto do Alto Minho. E se à boa mesa se unir uma cama confortável, tanto melhor, como atestamos na Quinta do Outeiro 1598, um projecto de Inês e Sebastião Sousa Pinto, que tem a assinatura do arquitecto Eduardo Souto de Moura, vencedor do Prémio Pritzker e tio de Inês, por sinal. Chegamos de noite a esse novo alojamento, no concelho de Ponte da Barca, e ainda apreciamos o céu estrelado antes de entrar na casa, com lareira acesa e mesa posta – há serviço de refeições reservado aos hóspedes, por marcação, com o selo do chef consultor Gonçalo Henriques. Não falta, por exemplo, o naco à Terras da Nóbrega (carne de cachena com um molho que leva verde tinto), mas os vegetarianos não ficam a perder – uma garfada de brás de legumes basta para o constatar.
A carta de vinhos inclui referências de diversos produtores da região, além do seu Partilha. O nome não poderia ser outro, explica o casal, que gosta de receber pessoas em casa, de as reunir à mesa, e só entrou nesta aventura porque houve partilhas entre duas partes da família. Para decidir quem ficaria com a Quinta de Rial e com a Quinta do Outeiro, atirou-se uma moeda ao ar, e a última calhou ao pai de Inês. Certo é que as duas propriedades, contíguas e com um passado ligado à agricultura, voltaram a juntar-se num projecto vínico. O próprio rótulo, que ganhou um prémio de design, dá a ideia de ter sido rasgado e novamente colado.
Saboreamos, pois, o Partilha Loureiro 2021, que Sebastião descreve como muito citrino, com aromas a flor de laranjeira e “fácil de beber”. Acompanha bem saladas, aperitivos, sushi… Tanto, que conquistou uma medalha de ouro nos Sakura Japan Women’s Wine Awards 2023, perante um júri composto por mulheres. De curiosidade em curiosidade, vamos sorvendo a história da Quinta do Outeiro, fundada em 1598 e adquirida, em 1933, pelo bisavô de Inês Sousa Pinto, ele mesmo produtor de vinho. Quando chegou às mãos dos actuais proprietários, o primeiro passo foi tirar proveito da terra.
O projecto agrícola começou há uma década. Sebastião, quase no limite da idade, foi fazer o curso de jovem agricultor, que conciliou com a advocacia. Hoje, a quinta, onde se faz agricultura biológica, produz mirtilos, castanhas, vinho e mais. Na vinha, optou-se pelas castas loureiro e arinto, estando também em marcha uma experiência com vinhão, envolvendo um estágio curto em barrica de carvalho francês. E hão-de ser plantadas mais duas ou três castas autóctones, para ir fazendo testes. O objectivo, em suma, é “desenvolver o projecto de vinhos, com várias referências, explorar coisas inovadoras, ter uma adega que possa ser visitada”.
Em Abril, inaugurou-se a há muito desejada vertente de alojamento, aproveitando as ruínas de uma antiga casa cuja traça original se procurou manter. Há sete quartos, dominados por madeiras e tons suaves. Um deles, no piso térreo, dá para uma sala que vai ter kitchenette e comunica com outro quarto, pelo que facilmente esse conjunto vira apartamento. A maior parte do mobiliário foi desenhada por Souto de Moura, e uma ou outra por Siza Vieira, igualmente distinguido com o Pritzker. Muita gente ligada à arquitectura e ao design vai ali quase em visita de estudo. Em regra, o acesso é vedado a menores de 12 anos, para que ninguém perturbe ninguém. Abre-se uma excepção quando a casa é cedida por inteiro – por exemplo, no período de festas que se avizinha.
Na Quinta do Outeiro, “defende-se o refúgio, a tranquilidade, a natureza", sublinha o casal, que fez de um bungalow sala de massagens, aos pés dos castanheiros. Na devida época, os hóspedes podem participar, inclusive, na apanha da castanha. Passeios de bicicleta eléctrica, caminhadas e observação de aves são outras propostas, num lugar que seduz também pela proximidade ao Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Dos cruzeiros velozes ao mercado de slow food
Damos muitas voltas, apreciamos a arquitectura dos edifícios e da natureza, fazemos de qualquer curva na estrada miradouro, para regressar, invariavelmente, ao calor dos pratos que chegam em doses mais do que generosas. “O Minho tem fama de servir bem e em quantidade; não íamos ser nós a deixar essa fama ficar mal”, dizem-nos n’O Braseiro, já em Arcos de Valdevez. A posta de cachena com arroz de feijão tarrestre (um feijão rasteiro e mais miúdo, que era criado nos socalcos de Sistelo) tem lugar de honra no menu, assim como o cabrito mamão da Serra do Soajo, disponível lá para meados de Fevereiro. Garantido é que ninguém sai dali com fome, mesmo que não coma carne nem peixe. Logo se improvisa um prato vegetariano, e as entradas tanto levam alheira de cachena como cogumelos, ambos de produtores locais.
Os vinhos da terra também surgem em destaque. A escolha pode ser difícil, mas lá se abre um Casa da Senra Loureiro 2022, da Quinta dos Abrigueiros, apresentado como leve, bastante frutado. “É uma preocupação nossa mostrar o que se produz na região”, comenta Fernando Fernandes, que lidera esta casa aberta como churrasqueira, há mais de 30 anos, pelo seu pai. Fernando corria mundo a trabalhar em restaurantes de cruzeiros no segmento de luxo, até que foi preciso continuar o negócio familiar.
Dessa experiência além-fronteiras retirou bons ensinamentos, como se nota pelo serviço cuidado, pelo rigor na escolha dos ingredientes e na apresentação dos pratos, aos quais tenta imprimir um cunho próprio. Exemplo disso são os charutos à Braseiro, que levam farinha de feijão tarrestre – esse que havemos de encontrar em Sistelo, vencedora das 7 Maravilhas de Portugal na categoria de Aldeia Rural e cuja paisagem natural está classificada como Monumento Nacional.
No último domingo de cada mês, realiza-se o Mercado da Terra de Sistelo, que acaba de aderir à Rede Mundial de Mercados Slow Food. Na base de tudo está um movimento internacional cuja missão passa por “preservar produtos genuínos locais e tradições em vias de desaparecimento”, esclarece Jorge Miranda, líder do Convivium Slow Food Alto Minho. Das bancas dos produtores, no Largo da Igreja, espreitam ovos, queijos, mel, broa de milho, bolo do tacho ou maçãs porta-da-loja. E, de súbito, aquela paisagem singular ganha vários rostos.
Ouvir o silêncio a 800 metros de altitude
A viagem aproxima-se do fim, mas ainda há mais para saborear – vinhos, sim, e enquadramentos de sonho. Da sub-região do Lima passamos para a do Cávado, com um destino em mente: O Abocanhado, restaurante situado na aldeia de Brufe, em Terras de Bouro. Pelo caminho, paramos o carro perante a visão de garranos a pastar, livres, numa encosta. De pelagem castanha, chegam a confundir-se com a vegetação outonal. Contamos nove cabeças, enquanto o dia dá lugar à noite e a lua fica mais nítida, no cimo daquele quadro perfeito.
Na chegada a Brufe, na zona limítrofe do Parque Nacional da Peneda-Gerês, são as aves nocturnas que se fazem escutar. O frio já aperta quando entramos no estabelecimento inaugurado, duas décadas antes, por Helena Ramos e Henrique Marques. O casal, que tinha ali uma casa de férias, montou o negócio porque não havia onde comer, e a aldeia era muito visitada. “Olhando para trás, foi arriscado”, assume ela, que queria um projecto diferenciador, a começar pelo edifício, mandado erguer segundo os traços de António Portugal e Manuel Maria Reis. Arrecadou dois prémios internacionais de arquitectura, e está equipado com móveis desenhados por Siza Vieira, conjugados com artesanato e algumas peças rústicas.
Os sabores regionais têm lugar cativo na ementa, que inclui desde veado estufado até posta com trouxa de couve de migas, sem esquecer o cabrito (disponível por encomenda) e a tibornada de bacalhau. Como companhia, não poderiam faltar os vinhos da região. Duas referências até são servidas a copo, porém, a eleita é uma garrafa de Monólogo Avesso 2022, da Quinta de Santa Teresa, em Baião. A equipa continua a ser formada por trabalhadores das redondezas, e neste ano ganhou novo membro: o chef Álvaro Araújo, que decidiu voltar às origens depois de ter andado pelo Algarve e por diferentes países. Mesmo o nome da casa deriva de expressões locais: se o tempo abocanhou, significa que parou de chover.
E é quando a chuva estanca que melhor se aprecia a paisagem, num edifício construído como mais um socalco na vertente da Serra Amarela, a cerca de 800 metros de altitude. A vista sobre o vale do rio Homem é deslumbrante, como se verifica na manhã seguinte. É que, entretanto, os responsáveis pel’O Abocanhado criaram um projecto complementar, de dormidas. Leiras do Tempo Cottages é como se chama esse conjunto de seis unidades de alojamento (suítes, T0 e T1) que ocupam o lugar de velhos palheiros, abrigos para animais e casas em granito. A arquitectura ficou mais uma vez a cargo de Manuel Maria Reis, que deixou a sua marca, ainda, no bar Pisco – fechado temporariamente, pode ser requisitado para festas privadas. Seja como for, ali “ouve-se o silêncio”, observa Helena. Concordamos, e dizemos até já.
A paragem final é em Moimenta, Terras de Bouro, no restaurante Toca do Caçador, dos irmãos Alice e Alberto Cerqueira. Ela trata da cozinha, ele da sala. “Sou garçon, taxista e presidente da Junta [de Freguesia de Moimenta]”, diz Alberto, servida a refeição. Primeiro, chegam as pataniscas, depois a sopa de legumes à lavrador (“Isto é quase meio almoço”, avisa), o cozido à portuguesa e, por fim, a maçã assada com mel (“Para a gripe, é melhor do que a medicina”). Tudo em harmonia com o verde tinto de um produtor da terra: Costa d'Além é o nome no rótulo, e há que beber pela malga.
A Toca surgiu há coisa de meio século, com a mãe a fazer sopas e sandes para alimentar o pessoal do lagar de azeite ao lado. Inicialmente, ocupava só a pequena sala com lareira, mas foi crescendo, rente aos pratos tradicionais, com espaço para algumas sugestões de caça – coelho, javali e perdizes “das bravas”. Certo é que a cada 8 de Dezembro há papas de sarrabulho com rojões à moda antiga, ou seja, na véspera, estão seis mulheres toda a tarde a desfiar a carne e o pão. Vale a pena marcar na agenda, para não falhar a tradição no ano que vem. Alice atiça o apetite: “São papas em que se sente a carne. Aqui, come-se de garfo, não é à colher.” Menos não seria de esperar. Falta só engarrafar alguma calma, para levar no regresso à azáfama citadina.
Este artigo foi publicado na edição n.º 12 da revista Singular.
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