O que nos torna humanos

Quando a acção humana se tornar abstracta, quando as sereias cantarem melodias geradas artificialmente a todas as horas, ouviremos ainda os filósofos e os poetas a apelar ao bem, ao belo, ao real?

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Charles Platiau/REUTERS
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Atravessamos uma época de profunda amnésia. À semelhança da mítica merleta, em eterno voo sem ter onde pousar, movemo-nos hoje com tamanha pressa que a História não nos toca. E, contudo, que sucede a uma geração incapaz de vislumbrar o longo arco das epifanias e dos fracassos humanos? Nietzsche disse: “Removei os Gregos, juntamente com a filosofia e a arte, e que escadote vos resta pelo qual ascender à cultura?” Pois o que é a cultura senão um grande fio iluminador que liga os vivos ao laboratório antigo da experiência humana? Como havemos de suportar o vazio se apagarmos da memória colectiva a nossa herança moral, esse sonho ateniense de virtude e igualdade cívica, de par com os valores do Iluminismo que forjaram as democracias liberais que costumávamos acarinhar e defender? Uma vez eviscerada, a cultura corre o risco de redundar em pouco mais do que uma aglomeração artilhada de tropos e memes que unem uma tribo tão-só para excluir outras.

Embora o sentido crítico da História possa ser exclusivo dos seres humanos, o tribalismo não o é: os chimpanzés e as formigas também se dividem em facções, discriminam e guerreiam entre si. O que mais nos distingue do restante reino animal é a nossa capacidade inata de ir além da mentalidade de rebanho e da teatralidade do macho alfa, de nos distanciarmos da turba sedenta e nos adentrarmos nos domínios mais ousados e mais vulneráveis da compaixão, da empatia e da generosidade. Robustecida por essas qualidades, a cultura torna-se uma força para derrubar muros e construir pontes. Alguns dos mais excelsos períodos da humanidade foram aqueles em que, num espírito de solidariedade criativa e consciência histórica, uma franja vital de visionários conseguiu captar o zeitgeist de uma época, abafando a idiotice com ideais humanistas e extraindo-nos de tempos conturbados. Onde estão hoje esses visionários?

Há vários milénios que ditadores, fanáticos religiosos e mercadores se fazem passar por revolucionários populistas, prometendo a Lua, mas acabando por subjugar as nossas liberdades em proveito próprio. Para alcançarmos um revigoramento colectivo, precisamos tanto de líderes sábios e ponderados, quanto de cidadãos informados, capazes de destrinçar a generosidade genuína da generosidade falsa.

Chegamos, assim, aos perigos das sociedades digitais em que nos vemos cada vez mais enredados. O nosso mundo perceptual está a transformar-se num mundo de ofuscação quase constante da realidade física pelos media. Mediamos as nossas vidas mais do que as vivemos, privando-nos da sensualidade e do feliz acaso implícitos na experiência directa. Desprovida de natureza em estado selvagem, de corpos, de silêncio, essa manta de retalhos feita de simulacros a que chamamos “a vida conectada” é uma Disneylândia fantasmagórica, um lugar em que falsificação e mentiras mundanas se fundem na perfeição com o culto de celebridades, políticos aparatosos, juvenis magnatas da tecnologia e influenciadores de plasticina, todos eles proficientes na arte de sorrir para a câmara. No nosso mundo hiperconectado, a fantasia e a realidade não passam de duas faces do mesmo espectáculo capitalista que monetiza a nossa atenção e nos distrai do verdadeiro mundo que nos rodeia.

Dado que cada vez mais indivíduos e instituições aderem à promessa digital da eficiência e da optimização, e a inteligência artificial se torna indistinguível da expressão humana, em breve nos encontraremos numa crise de humanidade simulada. Os nossos ecrãs e auriculares dar-nos-ão uma cacofonia de rostos e vozes, mas escassa certeza de com quem ou com o quê estamos verdadeiramente a interagir. E conforme a nossa fuga do real para o virtual progride, o único meio viável de envolvimento social para o cidadão é a aquiescência ao frenético estilo de vida digital. A conectividade constante acarreta a sobreexposição a arremedos de gestos humanos e, por sua vez, o esgotamento das nossas faculdades críticas. Aquilo a que outrora chamávamos bom senso – a capacidade adquirida de reconhecer a banha da cobra, o charlatão, o oportunista – dá lugar, na era da inteligência artificial, à fé cega.

Num mundo ferido pela dúvida e pelo entorpecimento moral, como podem a confiança, a reverência e a generosidade florescer? Sem tempo para reflectir, sem o tédio que outrora preenchíamos com o pensamento, o sentimento e o sonho, sem a liberdade de estarmos quietos, de nos pormos à margem, de nos demorarmos, de nos orientarmos por nós próprios, de reflectirmos sem influências indevidas, de opinarmos livremente sem medo de sermos cancelados, de dispormos dos imprescindíveis tempo e atenção para amarmos a vida – sem todos esses adventícios interlúdios contemplativos, convertemo-nos em utilizadores por excelência, meros fantoches dos poderes obscuros que dominam os algoritmos.

Quando a acção humana se tornar abstracta, quando as sereias cantarem melodias geradas artificialmente a todas as horas, ouviremos ainda os filósofos e os poetas a apelar ao bem, ao nobre, ao belo, ao real? Somos indubitavelmente mais do que engrenagens de uma máquina, mais do que macacos ou insectos, mais do que consumidores crédulos manipulados pelos fios retesados da tribo e do capital. Somos uma espécie propensa a celebrar a vida pelo seu valor intrínseco, a dar sem esperar receber em troca.

Se uma parte suficiente de nós mantiver a liberdade cognitiva e a clareza de distinguir entre arte e publicidade, trabalhadores humanos e chatbots, heróis e influenciadores, amigos e assistentes virtuais, líderes e déspotas, talvez ainda tenhamos oportunidade de continuar a ser inventores curiosos, senhores das nossas espectaculares ferramentas, ao invés de autómatos autodestrutivos. Se guardarmos espaço nas nossas mentes e tonificarmos os nossos músculos empáticos, quem sabe ainda possamos preservar a sociedade civil no decurso de mais uma idade das trevas.


Tradução de Rita Almeida Simões

Jonathan Simons é editor e fundador da editora americana offline Analog Sea e da sua revista literária, The Analog Sea Review

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