Ciência, ensino, atualização
Um assunto que me perturba: para além da extensão dos programas, como é possível que a maioria dos livros adotados no ensino secundário continue a transmitir imprecisões e erros?
No “meu tempo” de estudante universitário (final dos anos 1980) a profissão mais segura para um biólogo recém-formado era a de professor do ensino secundário. O emprego era garantido, a carreira previsível, as necessidades evidentes. Para a via de investigação, onde reinava (maior) incerteza (Mariano Gago ainda não tinha deixado a sua marca), ia uma minoria. Nestas dinâmicas ter-se-ão perdido excelentes investigadores em potência para a via do ensino, para onde foram também colegas sem qualquer vocação docente.
Mais recentemente, tem sido o oposto, e sinto que se podem ter perdido excelentes professores, que optam por uma carreira de investigação, apesar de toda a precariedade associada. Porquê? Porque a degradação da profissão de professor do ensino secundário tem sido pública e notória, a todos os níveis. Mesmo que não partilhasse casa com uma professora de Biologia e Geologia com 30 anos de experiência, e que, até recentemente, ganhava menos do que ganhava em 2005, era impossível não dar por isso. E eu, que sempre pugnei por uma avaliação exigente e com consequências, não posso deixar de compreender a desmotivação, ou “soluções” como o emprego paralelo do imenso mercado de explicações.
Mas queria deixar aqui uma nota sobre um problema que não pode sequer ser abordado com este tipo de condições, e que é relevante também noutros contextos nacionais. Não sei em que medida a separação entre Ministério da Ciência e Ensino Superior e Ministério da Educação contribui para a situação, mas esse problema é a necessidade permanente de atualização de todos os professores, a sua ligação umbilical enquanto corpo à investigação científica, em todas as áreas do conhecimento. Só assim poderão transmitir conceitos mais próximos da realidade que rodeia, ou vai rodear, os seus alunos (e eles próprios). E o que existe atualmente não é de molde a suprir inevitáveis lacunas em áreas onde a desatualização é quase diária.
Como só se deve falar do que se sabe, focarei apenas a minha área. Onde ensino aos meus alunos coisas fantásticas que, ou eram consideradas altamente improváveis quando eu estava no lugar deles, ou nem sequer se sonhavam, e que hoje começam a ser uma realidade, disponível para explorar e criar valor(es). Como, para parafrasear o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke, os avanços tecnológicos acabam por poder ser confundidos com magia, é bom explicar constantemente os mecanismos por trás dessa “magia”, ou estaremos rapidamente envoltos em expectativas irrealistas ou, pior ainda, em “realidades alternativas” descontroladas com base em ignorância, que o famoso “bom senso” não resolverá. O papel dos professores é aqui fundamental.
Um outro assunto que me perturba é este: para além da extensão dos programas, como é possível que a maioria dos livros adotados no ensino secundário continue a transmitir imprecisões e erros? Por exemplo, que a cauda do espermatozoide fica de fora do oócito aquando da fertilização e formação do zigoto, quando a verdade é que entra. Até se poderia argumentar que não é nada de grave, porque a inverdade (que a cauda fica do lado de fora) e a verdade (que a cauda entra, e depois é destruída) no fundo têm o mesmo resultado prático para ilustrar a questão científica em causa. E que consiste em perceber que herdarmos estruturas produtoras de energia, chamadas mitocôndrias, apenas da nossa mãe, ou seja, do oócito. Como o espermatozoide também tem mitocôndrias na cauda, se esta ficar do lado de fora está explicado porque motivo não herdamos mitocôndrias paternas. Só que não as herdamos porque são destruídas (com o resto da cauda) depois de o espermatozoide entrar, não porque fiquem do lado de fora. Faz diferença?
Faz, porque, e para sublinhar bem isto: o que está em muitos livros, e se ensina, não é verdade. E não é porque “são precisos mais estudos” ou “há dúvidas, e os cientistas discordam entre si”, o que leio algumas vezes. Não há dúvidas nenhumas. Ora, quando começamos a faltar à verdade, e a promover ignorância sem necessidade para “simplificar”, as consequências nunca são brilhantes. Desde logo, levando a que, por exemplo, se valorize uma manifesta inverdade enquanto resposta “certa” em exames. É isso que queremos? Numa sociedade autoritária e cegamente obediente, talvez.
A questão mais profunda formula-se melhor deste modo: este é um erro que eu facilmente deteto, porque trabalho nesta área. Não consigo jurar que não há outros problemas, em áreas que não domino. Mas conheço quem domine, na verdade temos um sistema científico de enorme qualidade, que pode ajudar a selecionar e a rever conteúdos, a dar sugestões, a promover ações de formação mais fora da caixa, a ajudar os colegas. Ninguém nasce ensinado, e eu aprendo imenso com as minhas experiências em escolas, com professores e alunos.
Mas, se quem pensa e escreve os manuais faz um esforço verdadeiramente notável, não pode saber tudo, e obviamente recorre a fontes. Que podem estar erradas, até porque neste contexto os erros se tendem a copiar devido ao não-recurso às chamadas “fontes primárias”, artigos científicos originais que podem não ser fáceis de localizar ou aceder; e que por vezes não primam por uma linguagem amigável para não especialistas. Por isso, quem sabe algo nalguma área específica, tem obrigação de oferecer os seus préstimos.
Foi isso que fiz em relação a este meu quase dilema pessoal da cauda do espermatozoide numa revisão recente de um manual, e quero agradecer profundamente essa oportunidade. Não é a primeira (nem a centésima) vez que falo nisto, mas desta vez teve alguma consequência, mesmo que apenas numa só obra. A questão é que este ideal utópico de trabalharmos todos em conjunto para potenciar um sistema de ensino público de qualidade, dinâmico e em permanente atualização tende a chocar com a realidade; e era perfeitamente evitável. A dignificação e valorização da carreira de professor, a um nível que lhes permitisse focar-se neste aspeto essencial (para além de todos os outros), era outro tema que gostava que os nossos futuros governantes considerassem, com a atenção que merece.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico