Direitos humanos: As palavras importam
Utilizar o plural no masculino para abranger todas as pessoas não é uma decorrência ineludível do bom uso da língua portuguesa. É o resultado de um fenómeno de normalização da dominação masculina.
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.” Foi graças a Hansa Mehta, ativista, escritora e política indiana, que o artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, e cujo 75.º aniversário celebramos neste domingo, colheu uma linguagem de género neutra.
Em 1791, Olympe de Gouges, dramaturga e ativista francesa, havia desafiado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada em França em 1789, quando, num golpe de ousadia, escreveu e publicou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. "Homem, és capaz de ser justo? É uma mulher que te pergunta; não lhe negarás esse direito. Diz-me isto? Quem te deu o poder soberano para oprimir o meu sexo? A tua força? Os teus talentos?” — lê-se na carta que acompanha a Declaração (tradução pela autora).
Ainda subsistem anacronias que surpreendem. No Direito Civil português, preserva-se a referência ao critério do “bom pai de família” para apelar a uma conduta diligente — artigos 146.º, n.º 1 (cuidado e diligência no âmbito do acompanhamento), 487.º, n.º 2 (culpa no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos), 1446.º (uso, fruição e administração da coisa ou do direito) do Código Civil, para nomear algumas normas —, fruto da influência do Direito romano. A figura jurídica do “chefe” ou “pai de família” ou, em latim, paterfamilias encabeçava a família (associação jurídica, composta por este, os filhos e filhas, a mulher e os escravos) e exercia, sobre todos os seus membros, poderes (potestas) quase ilimitados: o poder marital (manus), exercido em relação à mulher casada, que incluía o poder de vida e de morte, de castigo e de repúdio; o poder paternal (patria potestas), exercido sobre filhos e filhas, nascidos na constância do casamento ou mediante adoção, que incluía os poderes de vida, de morte e de alienação.
Mas já a revisão constitucional de 1997 alterou o artigo 109.º (na altura, 112.º) da Constituição, passando de “A participação direta e ativa dos cidadãos (...)” para “A participação de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”.
E nem mesmo esta oportuna alteração constitucional tornou a Constituição verdadeiramente inclusiva. Permanece vertida a premissa de que existem apenas dois sexos e dois géneros, feminino e masculino e, portanto, duas identidades, mulher e homem, o que exclui realidades não binárias, cujos corpos e cujas identidades e a forma como as expressam não refletem as expectativas individuais, sociais e institucionais relativas ao sexo/género.
Mas há subtilezas que apontam na direção certa. Na Resolução n.º 39/2013, a Assembleia da República recomendou a adoção por entidades privadas e públicas, nomeadamente o Governo, da “expressão universalista para referenciar os Direitos Humanos”, afastando a “expressão redutora” “Direitos do Homem”, em documentos oficiais, no exercício de funções na titularidade de cargos públicos, na produção de documentos particulares (escolares, académicos), assim como também na oralidade, com preponderância no âmbito de ações de formação e de ensino.
Nesse sentido, a subsequente Resolução do Conselho de Ministros n.º 21/2019 assumiu esse compromisso e a Lei n.º 45/2019, de 27 de junho procedeu a uma revisão global da linguagem utilizada nas convenções internacionais relevantes em matéria de direitos humanos que vinculam Portugal.
Serão meros adornos? Como se lê nas orientações lançadas pela ONU, “dado o papel fundamental da linguagem na formação de atitudes culturais e sociais, a utilização de uma linguagem inclusiva é uma forma poderosa de promover a igualdade de género e erradicar os preconceitos de género” e que passa por “falar e escrever de uma forma que não discrimine um determinado sexo, género social ou identidade de género e que não perpetue estereótipos de género” (tradução pela autora).
As palavras importam. Utilizar o plural e referências no masculino para abranger todas as pessoas não é uma decorrência ineludível do bom uso da língua portuguesa. É, antes, o resultado de um fenómeno de normalização da dominação masculina e do sistema patriarcal, em relação ao qual a linguagem não saiu incólume, optando por não se atualizar. Dizer “todos os homens” é uma escolha e não é o mesmo que dizer “todos os seres humanos”. Hansa Mehta, há 75 anos, sabia-o.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990