Luca Locatelli tirou um retrato de família à economia circular
Em The Circle, o fotógrafo Luca Locatelli tira o pulso às boas práticas de negócio e indústria que estão a tirar o conceito de economia circular da gaveta. Ideias para um futuro possível.
Uma das lições de The Circle é que a primeira lição está na natureza. E não se estranha que uma fotografia com o exemplo de uma lição matricial como a do processo de fotossíntese seja, afinal, a última imagem de uma exposição que, perante a desestabilização dos ecossistemas, se propõe mostrar-nos “soluções para um futuro possível”. Uma inspiração, mas também uma tentativa de fechar o círculo.
No final de uma visita guiada pela exposição na Gallerie d’Italia, em Turim, a expressão do fotógrafo italiano Luca Locatelli variava entre o feliz e o resignado, isto enquanto apresentava essa imagem com algas rodeadas de bolhas de oxigénio, exemplo de um ambiente onde esse fascinante fenómeno de natureza ocorre e que torna tão-só a vida possível — a Terra habitável. Era uma expressão optimista também, como quem diz: “Nem tudo está perdido; pelo menos, já descobrimos alguns segredos que fazem com que tivéssemos chegado até aqui e que podem servir-nos para continuar a estar.” O caule e as folhas da alga em ambiente aquático transmitem um sentimento de harmonia perfeita. Com a sua aparente simplicidade, a perscrutar a vida a acontecer através de um círculo, a fotografia de Locatelli — captada no Departamento de Ciências da Vida e Biologia de Sistemas da Universidade de Turim — ainda guarda aquela capacidade de provocar encantamento à boa maneira das primeiras fotografias microscópicas do século XIX.
Mas depois de termos visto, sala após sala, vários exemplos de parafernália hi-tech ou o resultado das mais avançadas investigações, porquê voltar a essa lição tão antiga de muitos milhões de anos? “Quisemos sublinhar que não há tecnologia melhor do que a que está na própria natureza.” Uma ideia reforçada por Elisa Medde, a curadora de The Circle, numa conversa com o PÚBLICO: “Não precisamos de inventar a roda. Precisamos de olhar para as soluções da própria natureza e deixá-la operar sem constrangimentos; não devemos usar a tecnologia para corromper a natureza ou os ciclos naturais.”
Do passado longínquo, Luca Locatelli só quis trazer (e lembrar) esta lição, porque em tudo o resto (fotografias, vídeos, textos e infografias) o olhar e a reflexão foram colocados ao serviço do presente e do futuro (não confundir com futurologia). Ou melhor, ao longo dos últimos dois anos, todo o esforço de Locatelli foi direccionado para encontrar e retratar as melhores práticas industriais, empresariais e associativas que tentam dar corpo (e razão de ser) ao conceito de economia circular.
Na verdade, o conjunto multidisciplinar que dá corpo a The Circle – Soluzioni per Un Futuro Possibile (até 18 de Fevereiro de 2024) contribui para que “economia circular” deixe de ser apenas um conceito abstracto, uma definição vazia ou uma ambição utópica. Embora tenha construído uma carreira ancorada no documentalismo jornalístico, as mais de 100 fotografias e vídeos de Locatelli em The Circle estão além desse universo (realista e testemunhal), trilhando caminhos que vão da quase abstracção ao hiper-realismo, do poético ao grandiloquente. Aliás, para o fotógrafo italiano vale tudo (inclusive causar alguma confusão num primeiro momento), desde que com isso consiga suscitar questões sobre o que se está a ver. Ou contribuir para que as suas imagens possam ser um protagonista no debate sobre o que se está a fazer para tentar reverter alguns dos indicadores mais alarmantes relacionados com o ambiente e as alterações climáticas.
A circular, mas pouco
Apesar de teorizado há muito tempo, o conceito de economia circular (que integra palavras como “redução”, “reutilização”, “recuperação” e “reciclagem de materiais e energia”) andou esquecido durante décadas. Ou então a circular apenas na academia ou entre movimentos de defesa da natureza e do ambiente. Certo é que a evidência científica dos últimos anos relacionada com os vários desequilíbrios ambientais e a realidade que nos toca hoje quotidianamente (sobretudo através de eventos climáticos extremos) vieram demonstrar que aquelas palavras “não são conceitos vazios ou apenas especulações teóricas de macroeconomia e sistemas políticos”, mas acções que é preciso pôr em prática com urgência. Resumindo muito e usando um slogan batido: “Não há planeta B.”
No texto do catálogo que acompanha a exposição (uma edição conjunta Gallerie d'Italia/Skira), a curadora Elisa Medde traça uma breve genealogia e ambições da economia circular: “O movimento da economia circular ganhou corpo na década de 1990 com o objectivo de abordar os problemas causados pelo desenvolvimento linear das actividades económicas, produtivas e sociais humanas e propor possíveis soluções a curto e longo prazo. Trata-se de um movimento ambicioso, cheio de contradições e de ideias brilhantes. Uma nova utopia em que, desta vez, a teoria se baseia na prática e não o contrário. Combinando conceitos retirados dos mundos da ciência, economia, agricultura, alimentação, física, filosofia, engenharia, direitos humanos, meteorologia, educação e muito mais, o movimento constitui uma enorme mente colectiva, transnacional e multifacetada, criando novas ligações neurais através das experiências práticas que partilha.”
Dito assim, pode parecer complicado. Até que entram em cena as fotografias e os vídeos de Luca Locatelli, que não só nos põem a par dos esforços mais recentes nesta área (sobretudo industriais) e nos mostram de maneira sedutora assuntos sobre os quais a leitura é normalmente muito aborrecida, como servem para nos insuflar algum optimismo em relação ao futuro do planeta (coisa rara por estes dias). Ou seja, já não é só teoria; já não são só palavras ocas; e há práticas (e experiências em prática) que se podem ter impacto a nível global. Então, será que podemos chamar a The Circle um mapa visual de esperança, um mosaico de possibilidades? Elisa Medde: “Sim. Tentei conjugar imagens que nos possam mostrar esse momento de transição — acho que a única forma de transmitir essa esperança é pôr as imagens a conversar entre si e depois a conversar connosco, de uma maneira que possa fazer com cada visitante pare um momento para pensar no que está a acontecer à sua volta, que possa sentir alguma coisa.”
E sentimos. Por exemplo, quando olhamos de longe para a fotografia escolhida quer para a capa do catálogo (impresso num papel feito pela Favini a partir de algas que proliferam na lagoa de Veneza), quer para a abertura da exposição na imponente entrada da Gallerie d’Italia (uma de quatro; a de Turim é a mais vocacionada para a fotografia), primeiro sentimos desnorte (É um olho gigante? É um cogumelo? É uma paisagem extraterrestre?); depois curiosidade (o que é aquilo?); e por fim admiração (afinal, há quem esteja a pôr em prática modelos de produção — mais ou menos novos — mais amigos do ambiente).
Na verdade, o que aquela fotografia mostra é um ramo de folhas da planta do tabaco numa quinta agrícola subaquática. Cultivar plantas debaixo de água? Isso mesmo. Esta quinta, a primeira experiência do mundo de agricultura subaquática, está ao largo de Noli, na Ligúria, Itália, e funciona desde 2012, tentando recriar no mar as condições ideais para o cultivo daquela planta, face à falta de condições à superfície, nomeadamente a falta de água doce, ou condições adversas, como os ataques de pragas, evitando-se assim o uso de pesticidas.
Afinal, nem tudo é mau, péssimo, irreversível, assustador (juntar outros adjectivos apocalípticos) no mundo da indústria e da sociedade de consumo. Esta passagem do texto de Elisa Medde no catálogo é toda optimismo: "Apesar de todas as contradições, forças opostas, negacionismos e fracassos, esta grande experiência de transição está a avançar e a dar passos gigantescos, com histórias aparentemente desligadas umas das outras, inconscientes e talvez até concorrentes, mas que, na realidade, fazem todas parte de um esforço sincrónico para fechar o círculo e fazer o que for preciso para alcançar o equilíbrio e a sustentabilidade dos recursos e do consumo que nos garantiria um futuro viável neste planeta."
A dançar na antiga mina
Para além de admiração, é difícil não sentir espanto perante as folhas da planta do tabaco a brotar debaixo do mar. Mas este é só o primeiro momento de fascínio, porque há outros. Como quando vemos novos usos para imensos terrenos industriais abandonados, ou quando nos deparamos com paisagens futuristas pontuadas com maquinaria que mais parece saída de cenários para filmes de ficção.
Como exemplos do primeiro fascínio encontramos imagens de euforia e celebração naquele que é o maior festival de música electrónica ao ar livre da Alemanha — acontece nas instalações das antigas minas de carvão de Grafenhainichen, que foi transformado num complexo que abriga um museu de máquinas industriais gigantes, um local para eventos e um parque temático (tudo com uma rigorosa política de eliminação de resíduos e consumo de energia sustentável); ou imagens entre o primitivo (paredes de pedra) e o sofisticado (cablagem, iluminação e organização modular) de uma antiga mina transformada num dos maiores centros de dados do mundo, que funciona apenas com energia renovável. Como exemplos do segundo fascínio, vemos imagens de arquitectura industrial e complexa maquinaria inventadas para capturar carbono; ou ainda imagens de sedução geométrica que nos revelam as mais sofisticadas fábricas de energia geotérmica — tudo na Islândia, o país da Europa com mais produção de energia a partir de fontes renováveis.
A par da Itália (sete iniciativas, que vão da reciclagem de têxteis à transformação de resíduos orgânicos em insectos para a indústria agrícola), foi na Islândia que o olhar de Locatelli mais se demorou (há imagens de seis exemplos de economia circular diferentes), voltando-se ainda para soluções em países como a Áustria (a Ecoduna usa um sistema de cultivo de algas para consumo humano no qual a água não é desperdiçada), a Espanha (exemplo de uma empresa galega que usa moluscos marinhos como filtradores) ou a França (utilização de um sistema inovador para o desmantelamento inteligente e a reciclagem de aeronaves em fim de vida).
E depois da Europa, qual vai ser o próximo capítulo? "Ainda estou a estudar, mas o meu instinto diz-me que tenho de ir para África." Porquê África? "Porque não sabemos nada sobre o que se passa lá e há coisas importantes a acontecer nesta área. É como pôr o futuro a olhar para o passado."
Para além do espanto causado por muitas das imagens de Locatelli, The Circle conta ainda com outra fonte de sedução: as infografias de Federica Fragapane. A mistura entre imagens fotográficas e infográficas acrescenta uma densidade benigna à exposição e tem o condão de tornar as primeiras ainda mais prementes, como se não pudessem faltar à chamada para esta espécie de retrato de família dos mais relevantes, actuais e inovadores exemplos de economia circular da Europa.
A arte de Fragapani vai muito além de uma certa qualidade cabalística das imagens que cria: faz-nos compreender temas muito complexos (“Soluções para a redução de gases com efeito de estufa”, “Componentes da conversão do solo”…) e, neste caso, perceber o quão urgente é a transição económica, a necessidade de uma nova Revolução Industrial assente na circularidade e não na linearidade.
A ideia de que os grandes meios de produção não podem ficar de fora do debate é, aliás, um eixo fundamental em todo o projecto de Luca Locatelli, que além do patrocínio do banco italiano Intesa Sanpaolo (as Gallerie d'Italia são o projecto do banco para a arte e para cultura) foi apoiado pela Ellen MacArthur Foundation, uma das instituições que mais tem promovido a economia circular no mundo. The Circle é um projecto pensado para se estender ao longo de uma década e tem nesta exposição a sua primeira manifestação pública. “Muitas das práticas aqui apresentadas precisam de ser aplicadas a um nível industrial. Claro que se deixarmos de usar palhinhas ou sacos de plástico estamos a contribuir para a solução, mas é preciso haver responsabilidade política, responsabilidade industrial — e isso é uma das mensagens da exposição, mostrar como é que a indústria pode e deve participar nesta conversa, em vez de atirar todas as responsabilidades para o indivíduo”, diz ao PÚBLICO Elisa Medde.
Após mais de dez anos a trabalhar como programador de software, Luca Locatelli (1971) começou a dedicar-se à fotografia documental e ao vídeo em 2006. Pouco tempo depois, estava a colaborar com os principais títulos da imprensa mundial. Desde 2013 que se dedica sobretudo a temas relacionados com o ambiente, rodeando-se de investigadores, cientistas e jornalistas para conseguir o máximo de contextualização das suas imagens — é isso que acontece em The Circle, onde os textos não são simples legendas e constituem outra forma de entrar na conversa e saber mais sobre o que está a acontecer na economia circular. Nos últimos anos, foi distinguido com vários prémios relevantes, entre os quais um primeiro lugar na categoria Environment Stories, com o trabalho The End of Trash, World Press Photo de 2020, ano em que foi distinguido com 40.º Leica Oscar Barnack Award, com o ensaio Future Studies.
Enquanto deambulava por entre as imagens de The Circle, perguntamos a Locatelli se, depois dos últimos dois anos a estudar soluções de economia circular, está hoje mais apreensivo ou mais esperançoso. A resposta veio com sorrisos: “Os dois! Quer dizer, sou pai e esse é um dos problemas… Precisamos de usar o nosso conhecimento para encontrar melhores formas de fazer negócio, isto para que a próxima geração possa decretar o fim do uso do carvão, por exemplo. Pode parecer utópico, mas a nossa responsabilidade é usar agora tudo o que sabemos para fazer produtos de uma maneira que permita que daqui a duas ou três gerações o mundo ainda esteja aqui, que não tenha acabado. Para se concretizar este tipo de negócio [sustentável] não é através do activismo ambiental, mas através do dinheiro.” Locatelli a fazer uma fotografia do futuro.
O PÚBLICO viajou a convite das Gallerie d'Italia