Para Catarina, ter uma assistente pessoal é ter uma vida digna: “Uma revolução”

Em Portugal, pessoas com deficiência são segregadas do espaço público e a liberdade nem sempre é um direito. A assistência pessoal veio mudar isso.

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A filosofia de vida independente “é uma revolução na forma como percepcionamos a deficiência”, acredita Catarina Vitorino Sergio Azenha
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Decidir viajar de comboio à última hora, dormir até tarde, ter ambições, sonhos, sair à noite, comer a comida preferida até enjoar — tudo isto são vivências, liberdades, que fazem parte da experiência de todos os seres humanos.

Mas, em Portugal, pessoas com deficiência que não disponham de apoio familiar nem sempre têm acesso à liberdade que é a espontaneidade do dia-a-dia. A institucionalização é, muitas vezes, o destino que muitas destas pessoas não escolheram. “É como se fosse uma fábrica”, descreve Catarina Vitorino, 28 anos, psicóloga e activista dos direitos das pessoas com deficiência, que vive em Coimbra. Nas instituições não há “espaço para as próprias pessoas se conhecerem” e isso vê-se em exemplos tão simples como “não saberem qual é a sua comida preferida”, ou mesmo se “gostam de dormir até tarde ou acordar cedo”, porque todos os dias são acordadas à mesma hora.

“Não há espaço para a individualidade das pessoas com deficiência”, reforça Catarina, acrescentando que muitos aspectos importantes de uma vida digna, principalmente o poder de decisão, “não chegam à pessoa com deficiência”, declara.

Já Diana Santos, 39 anos, psicóloga e vice-presidente do Centro de Vida Independente, refere que pessoas com deficiência segregadas do espaço público e impedidas de o usufruir, “no geral, não têm noção do quão discriminadas são”.

Por isto é que a filosofia de vida independente é uma revolução na forma como percepcionamos a deficiência”, começa por explicar Catarina Vitorino. “O que está errado não somos nós, pessoas com deficiência, não é o nosso corpo. É o contexto que não está preparado para nos receber”, resume.

Esta forma de encarar a deficiência de uma perspectiva não assistencialista surgiu nos anos 1970, na Universidade da Califórnia, quando um grupo de jovens com deficiência deu início à luta pelo acesso ao ensino superior. Desde então, este paradigma estabelece que as pessoas podem, e devem, ter o controlo da sua própria vida, tomar decisões sobre o seu quotidiano e estabelecer objectivos para o seu futuro.

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Catarina Vitorino e a sua assistente pessoal Sérgio Azenha

“Sou eu que tomo as decisões”

Um dos pilares da filosofia de vida independente é a assistência pessoal. Apesar de à primeira vista parecer semelhante, a assistência pessoal não é a mesma coisa que um cuidador.

No caso dos assistentes pessoais, é a pessoa com deficiência que gere e decide as condições e tarefas do profissional. “Sou eu que tomo estas decisões, sem depender de familiares e amigos”, diz Catarina. O assistente pessoal pode auxiliar nos cuidados de higiene e preparação de refeições, mas as suas funções vão para além disso, assistindo a pessoa com deficiência na sua vida social, profissional, cultural e política.

Tanto Catarina Vitorino como Diana Santos utilizam a assistência pessoal no seu quotidiano e dizem que as suas vidas melhoraram exponencialmente. No caso da activista de Coimbra, as suas assistentes pessoais auxiliam-na em todas as tarefas: nos cuidados básicos (como a higiene e alimentação), mas também na maquilhagem, no trabalho e nas actividades associativas. Além disso, através da assistência pessoal, Catarina conseguiu concretizar a sua vontade de viajar sozinha, algo que outrora não considerava ser possível.

Também para Diana a assistência pessoal abriu portas para uma vida que não julgava estar ao seu alcance: “Pude voltar a estudar e especializar-me na área que queria, algo que não tinha coragem de estar a exigir aos meus pais.” Ademais, através da assistência pessoal, Diana conseguiu sair de casa dos pais e ir morar com o seu parceiro. “Sempre pus na cabeça que não queria que o meu marido fosse meu cuidador e, por isso, noutras relações preferia terminar, porque não conseguia dar esse passo”, admite. Actualmente, Diana diz viver “como quer” e com a segurança de que ela e o marido vivem “de igual para igual”.

“Do ponto de vista da identidade tudo muda”, declara Diana. “Hoje em dia dizem que sou mais resmungona”, confessa, entre risos. “Mas é porque agora o posso ser, não tenho de estar a agradar ninguém.” A psicóloga revela que antes de ter assistência pessoal era “mais submissa”: “Não podia afrontar ninguém, nem mesmo os meus pais, porque depois são aquelas pessoas que te vão dar de comer e vestir. E é horrível, se estiveres a fazer a tua higiene com uma pessoa que não te fala.”

E em Portugal?

Em Portugal, a assistência pessoal começou em 2016 num projecto-piloto da Câmara de Lisboa. Uns anos depois, já em 2019, entra em vigor um novo projecto-piloto, o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI). Desta vez por todo o país e financiado por fundos europeus no âmbito do Acordo Portugal 2020.

O projecto-piloto do MAVI terminou em Junho deste ano, e, desde aí, a gestão da assistência pessoal ficou nas mãos da Segurança Social, num “período de transição”, com os contratos dos assistentes a serem renovados de seis em seis meses.

Numa decisão publicada na manhã desta quinta-feira em Diário da República, na Portaria n.º415/2023, o Governo decidiu avançar com o lançamento definitivo do MAVI. O texto estabelece “as regras para a criação, organização, gestão e funcionamento dos centros de apoio à vida independente” e do “exercício da actividade de assistência pessoal”.

Nessa mesma portaria, o Governo reconhece o sucesso do projecto-piloto, que, “com mais de mil beneficiários”, serviu para identificar “as melhorias necessárias e a sua incorporação no modelo definitivo, visando tornar a assistência pessoal mais efectiva no apoio à salvaguarda da vida independente”.

Em entrevista ao P3, quando ainda não se sabia que o MAVI iria avançar, Catarina Vitorino falava num período “assustador e de grande incerteza”. “Com a assistência pessoal ganhamos uma vida digna, mas agora há a possibilidade de nos tirarem isso. Há quem neste momento não tenha alternativa, não têm família para prestar apoio; por isso, ou é assistência pessoal, ou institucionalização”, explicou.

“Não sabemos quantos somos”

Não se sabe quantas pessoas precisam deste tipo de auxílio, ou mesmo quantas pessoas com deficiência existem no país. Não há números. “A única estatística mais próxima que temos são os censos. Mas a forma como os censos avaliam não é fidedigna, porque não existem parâmetros específicos de análise para as pessoas com deficiência”, explica a psicóloga de Coimbra. “Estamos às cegas”, acrescenta.

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O assistente pessoal pode auxiliar nos cuidados de higiene e preparação de refeições, mas as suas funções vão para além disso, assistindo a pessoa com deficiência na sua vida social, profissional, cultural e política Sérgio Azenha

Diana Santos destaca que, quando se elaboram medidas para pessoas com deficiência sem saber “quantas existem, onde é que elas estão, quanto ganham ou qual a distribuição geográfica”, o resultado é que estas “políticas não [chegam] a toda a gente” — é o caso da assistência pessoal.

Para a vice-presidente do Centro de Vida Independente, existir assistência pessoal para todas as pessoas com deficiência que assim o desejem “não é utópico”. Aliás, apresenta uma lista de países onde isso já acontece: Inglaterra, Suécia, Holanda e na vizinha Espanha.

No fundo, e apesar de ser uma das facetas cruciais para garantir a vida independente, ainda falta concluir o trabalho de inclusão e de eliminação de barreiras sociais e políticas para que as pessoas com deficiência possam ter uma vida digna. Para Catarina Vitorino, a mudança começa por integrar a deficiência nas questões políticas: “Nós vemos a deficiência como uma área específica, uma ‘pasta’ estanque no governo. E não é assim. Enquanto a deficiência não integrar as discussões sobre políticas de habitação, saúde e educação, a inclusão não vai acontecer.”

Texto editado por Renata Monteiro

Alterada às 12h50 de 7 de Dezembro para actualizar com informação da Portaria n.º 415/2023​, divulgada já depois da publicação do artigo.

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