“Contas certas”, a armadilha para iludir os portugueses
As “contas certas” foram a armadilha que o Governo socialista montou para, com algum sucesso, desviar a atenção (...) dos graves problemas do país, que são da sua inteira responsabilidade
1. Agora que o Orçamento do Estado para 2024 foi aprovado e esmoreceu o ruído à sua volta, é tempo de prestar um esclarecimento, que pode ser útil para o futuro, sobre o debate político e mediático que teve lugar, à luz dos ensinamentos dos livros de finanças públicas.
“Contas certas” foi a qualificação que ganhou maior destaque nesse debate, tanto no discurso do Governo como na maioria dos órgãos de comunicação social. O mesmo tinha acontecido no debate do Orçamento para 2023.
É assim normal que os cidadãos não especialistas na matéria tenham colhido a ideia de que “contas certas” é um objetivo primordial da política orçamental. Tratou-se, no entanto, de uma armadilha do poder socialista para iludir os portugueses, em que caíram vários agentes do espaço político e mediático bem-intencionados.
Em artigos publicados por Daniel Bessa e por Ricardo Paes Mamede, a expressão “contas certas” é qualificada de insólita, absurda, vazia e equívoca.
Nos capítulos sobre política orçamental dos tratados de Finanças Públicas, “contas certas” é um conceito que não existe.
O que estará subjacente à expressão vaga e nebulosa “contas certas” inventada pelo poder socialista?
Penso que o mais provável seja o facto de, no Orçamento para 2024 apresentado pelo Governo, as receitas do Estado serem maiores do que as despesas, isto é, ser positivo o saldo orçamental.
Os objetivos da política orçamental, referidos pela generalidade dos autores, são: a satisfação das necessidades sociais, como a educação, a saúde, a justiça, a defesa e a segurança; a equidade na distribuição do rendimento e da riqueza; o combate ao desemprego; a estabilidade dos preços e o crescimento económico.
A estes objetivos principais, alguns autores acrescentam a redução dos desequilíbrios regionais e a sustentabilidade ambiental.
2. Um certo valor para o saldo do orçamento não é um verdadeiro objetivo da política orçamental. É, sim, uma restrição ao grau em que os verdadeiros objetivos podem ser prosseguidos, na medida em que um défice orçamental implica a contração de empréstimos por parte do Estado.
O valor desejável para o saldo orçamental em cada ano, sendo uma restrição, deve ser determinado antes de o Governo elaborar a sua proposta de Orçamento, não por políticos, mas por um comité independente de especialistas de modo a satisfazer duas exigências. Primeiro, não pôr em causa o acesso do Estado aos mercados financeiros no ano em causa e no médio prazo, de modo a satisfazer as suas necessidades de financiamento a custos aceitáveis. Em segundo lugar, a adequação da política orçamental ao impacto desejável sobre a economia, expansionista ou contracionista, de que a variação do saldo estrutural é um indicador. São as chamadas políticas anticíclicas.
O comité de especialistas terá certamente em devida conta os níveis da dívida pública e do endividamento do país para com o estrangeiro, a evolução da situação económica e social do país com as políticas vigentes, a informação disponível sobre a natureza expansionista ou contracionista da política monetária do Banco Central Europeu (BCE), as previsões económicas internacionais e as regras orçamentais europeias.
Fica assim garantida a sustentabilidade da trajetória do saldo orçamental e do rácio da dívida pública numa perspetiva de médio prazo, evitando situações explosivas como a que aconteceu em 2011, em que Portugal, por erros graves do Governo socialista, perdeu o acesso aos mercados de financiamento e foi obrigado a recorrer à ajuda externa para não cair numa situação de bancarrota.
A qualquer Governo, exige-se uma atitude permanente de transparência e rigor na utilização dos dinheiros públicos, qualquer que seja o valor desejável para o saldo orçamental determinado pelo comité de especialistas.
Defendi a utilização deste método de determinação do saldo do Orçamento português, indicando mesmo países em que ele era seguido, numa conferência que proferi no Funchal, na sequência da violação, em 2001, das regras europeias de disciplina orçamental por parte de Portugal.
Esta minha proposta suscitou grande polémica, de tal modo que, seguidamente, publiquei num jornal diário um artigo de resposta às críticas, em que, entre outras coisas, lembrei que, democraticamente, o Tratado de Maastricht transferiu para o Banco Central Europeu a competência dos países da zona euro para controlar a moeda e fixar as taxas de juro — uma questão muito mais importante do que a fixação do valor do saldo do Orçamento. Lembrei também que a grandeza do saldo orçamental tem sobretudo a ver com o bem-estar das gerações futuras e que parte destas não pode influenciar as decisões políticas do presente, por ainda não terem idade para votar.
Com base no valor desejável para o saldo orçamental, que deve ser do conhecimento público, o Governo elabora as suas propostas políticas de composição do Orçamento em matéria de aquisição de bens e serviços, prestações sociais, impostos, taxas, transferências, investimentos, subsídios e outras rubricas. Os partidos da oposição, por seu lado, preparam as suas posições orçamentais sabendo que, no final, o Orçamento deve respeitar o saldo desejável determinado pela comissão de especialistas.
Os totais da despesa pública e das receitas fiscais e não fiscais e a distribuição entre os seus diferentes tipos são opções políticas e é sobre elas que deve incidir o debate e as negociações partidárias com o Governo.
3. Porque é que o Governo socialista, através do insistente discurso das “contas certas” nos anos recentes, procurou passar a mensagem de que o saldo orçamental, positivo, equilibrado ou ligeiramente negativo, era o objetivo primordial da política orçamental, quando de facto não o é?
O que o Governo pretendeu foi condicionar o debate orçamental e o comentário político, desviar as atenções e abafar as consequências negativas da sua política, de que se apresentam seguidamente alguns exemplos de que os oito anos de governo socialista é o grande responsável:
- O desperdício dos dinheiros públicos, evidenciado pelo crescimento acentuado da despesa pública, enquanto se assiste à degradação da qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos. A dimensão do desperdício está muito para além dos casos da TAP, da Efacec e da revogação das parcerias público-privadas da saúde. O monstro da despesa pública atingiu uma tal grandeza e ineficiência que o seu controlo só será possível através da adoção de um orçamento de base zero, em que cada serviço público tem de justificar e fundamentar as verbas solicitadas para o novo ano, em lugar de tomar por base o Orçamento do ano anterior.
- A degradação do Serviço Nacional de Saúde, bem expressa no encerramento das urgências, nos muitos milhares de portugueses sem médico de família e no tempo de espera, que chega a ultrapassar um ano, para uma consulta ou uma cirurgia.
- A crise da habitação, a escassez da oferta de casas para arrendar ou vender e a falta de casas de entidades públicas para acolher famílias em situação económica difícil.
- A crise da escola pública, que prejudica fortemente os filhos das famílias mais desfavorecidas, numa clara violação do princípio da igualdade de oportunidades.
- O sistema fiscal caótico, inequitativo, complexo, instável e não competitivo internacionalmente que lança sobre os contribuintes uma carga brutal.
- Os baixos salários, fruto de uma política económica que não favorece o aumento da produtividade e estimula a emigração dos jovens qualificados e inovadores.
- O empobrecimento relativo do país, tendo caído para a 22.ª posição em termos de desenvolvimento, medido pelo rendimento per capita, entre os 27 países da União Europeia. Um semanário escreveu recentemente que o facto de a Roménia, país que aderiu à União em 2007 em situação de grande subdesenvolvimento, ter ultrapassado Portugal era “o espelho da vergonha nacional”.
As “contas certas” foram a armadilha que o Governo socialista montou para, com algum sucesso, desviar a atenção dos órgãos de comunicação social e dos analistas e cronistas políticos dos graves problemas do país, que são da sua inteira responsabilidade, e condicionar a atitude dos agentes do espaço político em relação ao debate do Orçamento.
A armadilha das “contas certas” foi também uma tentativa de esconder a incompetência e a baixa qualidade moral de alguns ministros.
Se o debate político e mediático do Orçamento tivesse, desde o seu início, sido centrado nos verdadeiros objetivos da política orçamental, tornando evidentes as orientações erradas da proposta do Governo, era possível que tivessem sido introduzidas algumas alterações que melhorassem a provisão das necessidades coletivas, a equidade distributiva, o crescimento económico e a taxa de inflação, sem alteração dos valores do défice orçamental e da redução do rácio da dívida pública.
Espero que o Governo saído das eleições antecipadas coloque o saldo orçamental no seu devido lugar, adote uma atitude de transparência e rigor na gestão dos dinheiros públicos e perceba que o processo legislativo orçamental vigente é, ele próprio, fonte de desperdício e bastante prejudicial à eficácia da política orçamental na prossecução dos seus verdadeiros objetivos e proceda à sua reforma, aproveitando os estudos elaborados pela Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) da Assembleia da República.