Afro Fado: a investigação sonora de Slow J prossegue dentro de momentos
Mesmo com alguns erros de casting, eis um dos momentos mais altos da música portuguesa em 2023.
Quando em 2017 The Art of Slowing Down teve aqui honras de capa, o sadino dizia, misto de júbilo e ingenuidade, ao que vinha: “Estou aqui para inventar música nova.”
Independentemente dos escolhos subjacentes à definição do que é ou ainda pode ser “novo”, era altíssima a fasquia colocada pelo próprio. Ora, é no seu primeiro disco com título português – o que encontra prolongamento na centralidade que a guitarra portuguesa assume decididamente na sua música – que pela primeira vez se lhe detecta uma certa mesmidade ou indiferenciação relativamente às tendências massificadas do momento.
É algo palpável de forma muito concreta nos últimos quatro temas do disco (Seda, Sereia, Cabeça e Origami, cujo desempenho de G-Son podia ter outra força se despido do instrumental epicamente delico-doce que o domestica), que, mais do que supérfluos no conjunto do alinhamento (a reflexão final de Origami sobre o enraizamento e falta dele é perfeitamente redundante depois do que está para trás), possuem um indisfarçável sabor a déjà vu. Concretamente, a uma certa e banal pop e R&B de inspiração africana sem imaginação nem rasgo (sobretudo naqueles estafados drum kits), e a que o texto também não ajuda (sensação reforçada pela métrica padronizada próxima do trap, quase mumble em Cabeça). O que também poderá ser explicado pela co-produção que o músico manteve neste disco com a dupla Goias (o single Grandeza, com a colaboração destes últimos, que levou à plataforma online Colors havia sido já, atendendo ao seu rico catálogo, um tiro ao lado, sintomaticamente tendo ficado de fora do novo disco).
E é pena porque, amputado dessas canções, Afro Fado é um trabalho realmente inspirado, comovente, em alguns momentos mesmo extraordinário, denotando o aprofundamento da investigação sonora que o músico vem empreendendo desde o primeiro dia. Já o havíamos dito a propósito de The Art… e reiteramos (o último álbum, You Are Forgiven, parecia ter deixado a questão em suspenso): essa busca por um som, obsessiva e bonita de se ver, tem, contudo, o inegável e colateral efeito de um certo desinvestimento no material escrito, que não mais recuperou, com algumas excepções que confirmam a regra, a fluidez e o lirismo do EP de estreia The Free Food Tape. Como se o som tivesse assumido a prioridade por completo e o texto viesse apenas numa fase subsequente para nele se encaixar (por vezes entoado num estilo excessivamente soluçante, como acontece em Ultimamente ou Reza). Slow J é hoje um letrista muito mais directo e prosaico, “pop” neste sentido, aqui até algo juvenil (com anglicismos e alusões a “likes”, “facts” e etc., contestando a importância dada aos primeiros e aos corpos seminus da “Internet”…). O que também explicará o gigantesco apelo que hoje a sua música suscita entre diversos tipos de público. Opção (consciente ou não) que se respeita, evidentemente, mas que deixa uma real frustração no palato.
Se a música africana (nas suas plúrimas declinações) e o fado eram já as grandes latências dos discos anteriores (se bem que mais como motivos ou apontamentos), agora harmonizam-se num corpo sonoro realmente sólido e pujante, melancólico mesmo se dançante (a kizomba, mais ou menos acelerada, de Tata, Fogo ou CorDaPele). Neste sentido, a expressão “afro fado”, de todo um mero slogan, tem aqui plena razão de ser, porquanto sela um trabalho sonicamente conceptual, venha ele na forma de um banger hipnótico como Where u @ ou na aceitação do fim, amoroso ou apenas fraternal, de Sem ti (a guitarra com uns pozinhos de bossa nova).
É o trabalho mais africano e acústico de João Coelho, em que o rock e a eléctrica em geral se esvanecem e a guitarra portuguesa passa a ser tocada e não apenas “samplada”. A mistura (de culturas, cores, sons) foi, desde a primeira hora, a ideia-mestra de Slow, que, porém, nunca dela fez bandeira politicamente barata (nem correcta), e, em Nascidos & Criados, com a formidável participação de Teresa Salgueiro (que já Sam The Kid reverenciara em Poetas do karaoke: “O Samuel é Madredeus, é Dulce Pontes…”), o músico ironiza sobre esse atávico conceito de “apropriação cultural” e seus double standards “wokistas” (e talvez que a sua insistência nestas questões se encontre em directa relação com o entrincheiramento identitário crescente). De permeio, outros ventos sempre sopram: o flamenco de Nascidos & criados e Reza, os coros e as melodias reminiscentes da canção de embalar ou aqueles jogos vocais em sotto voce, acompanhados por violino, de CorDaPele (a lembrar a Solta-se o beijo da Ala dos Namorados, mas também Vozes da Rádio ou Tetvocal).
A propósito de You Are Forgiven, havíamos sugerido como Também sonhar selava um encontro escrito nas estrelas. Agora junto delas, Sara Tavares estará certamente orgulhosa do fado africano sonhado por aquele menino que, na fotografia da capa em que Amália e Eusébio se cumprimentam, espreita, sorridente, mesmo por debaixo do braço do segundo. Podia ser Slow J.