ALLiAN cresceu no seio de uma família católica e conservadora, ser queer nem sempre foi fácil. Veio morar para Portugal com a família aos 15 anos e, já aqui, relembra alguns episódios de racismo e queerfobia na escola: “Não havia informação nem educação na escola sobre o assunto”.
Para o estudante de História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a procura activa por informação na Internet sempre o ajudou a “não baixar a cabeça”. “Gosto de meninos o que fazer?” ou “O que significa ser LGBTQ?” eram pesquisas recorrentes.
Agora com 20 anos, e com a consciência social aliada à vontade de fazer música, ALLiAN quer agitar a cena nocturna portuense. A ideia inicial era fazer música, só não sabia “como”. Foi desta vontade, e de uma conversa com um amigo que partilhava o mesmo sonho, que nasce Arcana, em 2020. O grupo é “um colectivo de artistas LGBTI+ emergentes”, como explica o DJ.
Inicialmente, a música surge através de DJ sets com fortes influências pop e hyper-pop. Mas ALLiAN ressalva que a música brasileira, uma parte muito importante da sua identidade — visto ter nascido e crescido no interior de São Paulo —, também se manifesta na criação artística do colectivo. “Arcana também é uma junção de culturas”, avança o estudante.
Com a música experimental como eixo principal, o colectivo vai crescendo. Lançam o seu primeiro single, Pistola, em 2021, seguindo-se outros como Golpe da Boneca e Tarântula, em 2022. ALLiAN, fundador do grupo, garante que a finalização de um tão esperado álbum também será para breve.
Mas Arcana cresceu para além da música. Juntaram-se artistas de diversas áreas, ALLiAN trouxe para o colectivo a vertente da performance, outros artistas, como Luísa Lopes, ou Cyber Angel, trabalham com o design e parte gráfica e Rui Santos, ou Bug Snapper, encarrega-se da produção musical. Aos poucos, o grupo tornou-se um “melting pot de ideias”.
No colectivo, a actividade performática de ALLiAN é desenvolvida através de LAVA, a sua “persona de intervenção”. “LAVA não é só uma drag queen”, começa por explicar o artista, “ela é a canalização da minha raiva”.
A “persona de intervenção” de ALLiAN é um instrumento de canalização de sentimentos como “ódio, raiva, rancor” para a arte. “É com LAVA que trabalho esta energia, no palco, nas performances”, declara. É através desta persona que o performer pode “berrar e colocar todas as injustiças sociais de que a minha comunidade [LGBTI+] é alvo a nu”.
A noite como espaço de “experimentação”
“Somos jovens queer a fazer arte para jovens queer”, declara ALLiAN. Arcana evoluiu para algo mais do que um grupo restrito com alguns artistas. “Tornamo-nos numa plataforma de apoio a artistas LGBTI+”, afirma o DJ, “algo que não existia no Porto antes”.
De facto, uma das facetas deste colectivo com mais impacto no Porto são as suas festas — aliás, a primeira vez que a artista Keyla Brasil veio actuar ao Porto, foi numa festa de Arcana. A primeira foi no bar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mas desde então já tocaram e organizaram raves em espaços emblemáticos da cidade portuense, como Passos Manuel, Bar of Soap e os Maus Hábitos.
Os eventos de Arcana, chamados IN.TRAVA, trouxeram para a cidade algo até então desconhecido a “Lista T”. “Lista T”, explica ALLiAN, “é algo muito comum no Brasil, mas que nunca tinha visto cá em Portugal”. Resumidamente, “pessoas trans, não-binárias, drag queens, drag kings, não pagam”. “É um acto quase político demonstrar que as nossas festas são para aquela comunidade. Todos são convidados a divertirem-se connosco, mas criámos isto para a nossa comunidade.”
Acompanhando a experiência dos amigos que vivem no Brasil, o artista apercebeu-se que este tipo de iniciativas “fortalecia o tecido social queer”. “Achei que era necessário trazer isto para o Porto”, confessa.
Para ALLiAN, a comunidade queer na cidade portuense estava “muito isolada, vivia numa bolha” e com a criação da “Lista T” e de festas queer surgem oportunidades para as pessoas se conhecerem. Com as festas e com as performances de LAVA, ALLiAN pretende “criar espaços de experimentação seguros”. “Criar um ambiente onde uma pessoa trans, não-binária, queer, cis” possa ser livre de se expressar da forma que quiser, sem julgamentos.
Além de um espaço de experimentação, os eventos queer revelam-se também um espaço de oportunidades. “Algumas das residências e trabalhos artísticos que me têm surgido foram proporcionados por estas festas e têm sido uma espécie de ponte para o mundo artístico.” Um dos objectivos de ALLiAN é que as festas de Arcana se tornem “pontes” também para outros artistas emergentes e que lhes permita “penetrar circuitos que à partida lhes seriam negados”.
“Ainda é preciso gritar muito”
“É sempre vocês que eu vejo na televisão/ Cuidado que as pretas tão tomando posição”, estes são versos da primeira música do Colectivo Arcana, Pistola (2021), o primeiro tema que ALLiAN gravou e produziu.
Para o artista e DJ, a representatividade é um tema com o qual se batalha há muito tempo. “É extremamente importante veres pessoas que se pareçam contigo” na música, na televisão, no cinema, “para veres que és capaz de chegar a ‘esse lugar’”. Para pessoas não racializadas e que não façam parte de comunidades minoritárias, esta questão pode não parecer muito importante. “Enquanto pessoa branca, por exemplo, vês actores, músicos, apresentadores nos media, pessoas parecidas contigo com as quais te consegues identificar”, diz. Mas isso não é o caso para muitos.
No ramo da música e da performance, a luta por representatividade também norteia o seu trabalho. “Principalmente com o trabalho de Arcana, quero mostrar a pessoas como nós, que se nós o fazemos elas também podem.” Mas nem sempre é fácil, confessa: “Temos de gritar muito para que reconheçam a nossa existência.”
Para o estudante, “Portugal ainda não acordou” e apesar do seu "artivismo" e de colectivos como Arcana já estarem a agitar algumas camadas da sociedade, ALLiAN considera “que não é suficiente, ainda há pouca visibilidade”.
Texto editado por Mariana Durães