A comida de conforto é boa porque concentra sabores. Não sabe apenas àquilo que comemos, porque também sabe a memória e a vida. Cada um tem a sua memória e cada um tem a sua vida. Cada um também tem a sua comida de conforto, mas pode acontecer que duas pessoas partilhem comidas de conforto, mesmo que não se conheçam e sejam diferentes em tudo o resto.
A minha: vitela guisada com esparguete. Juntar: vinho branco, água (muita água), cenoura e rodelas de chouriço. Não que isso interesse ao leitor, a menos que esta também seja a sua comida de conforto. O prato tem de ser preparado pela minha mãe. Antes, podia e devia ser preparado pela minha avó. Há pratos que vão com as pessoas, mas este não foi. Com o tempo, a minha mãe vai chegar aos calcanhares culinários da minha avó, porque cozinhar é uma questão de tempo. Como tudo.
Hoje, só a minha mãe sabe fazer com que a vitela e o esparguete, embebidos em água e vinho branco, se transformem em alimentos místicos, capazes de quebrar as barreiras do espaço e do tempo. À frente de um prato servido com a nossa comida de conforto, todos somos o crítico Anton Ego, de Ratatouille — mas, o de joelhos esfolados e de lágrima no canto do olho.
Não chego a ser um zero à esquerda diante do fogão, mas não posso fugir da minha pessoa, nem da minha vida. Posso guisar a vitela e cozer esparguete e adicionar a quantidade certa de vinho branco e cortar o chouriço em rodelas, mas é-me impossível preparar a minha comida de conforto, porque não sou a minha mãe, nem a minha avó, ainda que elas me tenham passado parte do seu sangue.
São estas as receitas que partilhamos — as que nos constituem. Destapo o tacho e vejo a carne camuflada entre os fios de esparguete. E mais nada. Mas aquela não é a minha comida de conforto, porque foi feita por mim. O sabor não é o mesmo. Sabe-me bem, mas não me sabe ao mesmo: falta memória e vida — e esses, felizmente, não são produtos de supermercado.
A carne esconde-se e eu escondo-me por detrás deste prato sempre que tenho possibilidade — quando alguém, que, enfim, só pode ser a minha mãe, o prepara. São os outros que fazem a nossa comida de conforto. Nós só a podemos recriar — sempre sem sucesso. Não é uma questão de qualidade, claro. Neste ângulo, a minha mãe não deve nada a Bottura. Coitado do chefe italiano, porque não a conhece, nem pôde conhecer a minha avó na cozinha de sua casa. Sei que teria aprendido muito com ela; a cozinha da Beira Baixa não deve nada à de Modena.
De avental posto e com as mangas da camisa arregaçadas, simplesmente, não somos os outros, nem o podemos ser. O que, por vezes, podemos fazer é, entre suspiros, arrastar uma cadeira, assumir a derrota diária, porque há dias piores do que outros em que a única opção é a rendição, e esperar pela comida que nos estão a preparar e que, em breve, vai provocar uma renovação no nosso interior, unindo as pontas que se soltaram — no meu caso e no de tantos outros, através de nós de esparguete e fios de vitela.