Tenho uma doença, senti-me encurralado mas pedi ajuda
Recebi a ajuda que tinha que receber de profissionais e da família e dos amigos. Os homens são quase todos analfabetos emocionais, não porque não tenham emoções, mas porque não sabem falar sobre elas.
Estas são as palavras mais difíceis que alguma vez escrevi na vida. Faço-o porque acho que me ajuda, porque é importante não ter medo das palavras, e porque acredito que podem ajudar outras pessoas. Há mais de três anos que o meu corpo me tem aprisionado. Vivo com dor crónica que tem vindo sempre a piorar. Passei de viver bem a tentar sobreviver. Perdi muito. Perdi quase tudo. E saber perder é o maior desafio das nossas vidas.
Viver para sofrer não é viver. Fala-se muito, e bem, sobre a componente psicossomática de algumas doenças, mas fala-se muito pouco da componente somatopsíquica, ou seja, o impacto psicológico que uma doença física tem na nossa saúde mental. Uma doença física por vezes leva a nossa mente à total exaustão emocional, psicológica e anímica. E isto é cumulativo, não só não passa, como se vai adensando a nuvem negra dos nossos pensamentos, a ponto de empurrarem todos os outros campos da nossa vida, para um cantinho mínimo e inacessível.
Eu tenho um sonho humanitário que foi crescendo à medida que fui fazendo missões pelo mundo fora, que para mim é como filho a quem eu quero dar tudo o que tenho e o que não tenho. Nem as pessoas que me são mais próximas percebem o quão importante isto é para mim, porque, por mais que eu escreva e fale sobre isso, “ninguém” sabe o que é carregar no coração um cemitério de homens, mulheres e crianças que me morreram nas mãos, que poderiam ter sido salvas se tivessem acesso à medicina de primeiro mundo como nós temos aqui. E na minha cabeça podiam ser os meus, ou os vossos, filhos, pais, ou amigos.
Dei tudo o que tinha para lutar pelo meu novo livro Olhem para o Mundo com o Coração, disse para mim próprio que as poucas forças que ainda tinha iria usá-las para que, mais do que nunca, em tempos de guerras cruéis, as pessoas olhassem para os construtores de paz, e para que se humanizasse toda e qualquer vida, sem rótulos que nos afastam, nesta nossa família de 8 mil milhões de pessoas iguaizinhas a nós e a quem nós mais amamos. É uma luta difícil, mas eu prometi a mim próprio e às pessoas que cruzaram o meu caminho que lutaria até ao meu último fôlego.
O que mais agrava a minha dor é estar sentado ou de pé, e acumula para os dias seguintes, e por isso nas poucas apresentações que fiz do livro e nas pequenas deslocações que me fazem muito mal, cheguei a um limite de dor absolutamente insuportável. E directamente proporcional à minha dor vem a tristeza e o desespero, até que chegou o dia em que tive verdadeiramente medo de fazer mal a mim próprio, numa espiral de ideias obscuras que não me saiam da cabeça como parecendo ser a única saída para quem se sente encurralado. E liguei a quem tinha que ligar banhado em lágrimas, e tive que usar as palavras que nunca pensei que usaria: “Eu estou em risco de suicídio.”
Custou-me horrores assumir, porque ao verbalizar as palavras estas tornam-se ainda mais intensas nos nossos pensamentos. Mas falei, porque é a coisa certa a fazer, e também por isso eu escrevo este texto, para que falem sem medo e sem travões quando as emoções vos estiverem a sufocar. Aprendi com o tempo que não podemos ter medo das palavras, porque senão é o medo que toma conta de nós. Recebi a ajuda que tinha que receber de profissionais que já me seguem há algum tempo e da família e dos amigos. Salvaram-me a vida. Os homens são quase todos analfabetos emocionais, não porque não tenham emoções, mas porque não sabem falar sobre elas – e eu estou a tentar aprender, e tentar que os meus amigos também aprendam, porque tantos que eu sei que me adoram não conseguem ultrapassar bloqueios desta que é a maior das inteligências, a das emoções.
Falhei na luta pelo meu livro, e esta luta pôs a minha vida em risco. Mas continuo a acreditar que só vale a pena viver por algo por que estejamos dispostos a morrer. Dava a minha vida para que parassem de bombardear Gaza, dava a minha vida pelas crianças que estão a morrer à fome no Afeganistão, no Iémen, no Sudão do Sul, e em tantos outros países africanos, e dava a minha vida pelo nosso querido SNS, e claro, dava a minha vida por todas as pessoas que eu adoro.
Comparar desgraças é sempre um exercício muito injusto, mas ter uma doença invisível, mal compreendida, sem cura à vista, em agravamento, e que me tirou a capacidade de trabalhar, de viajar, e praticamente de me socializar, é uma âncora muito pesada, e cada vez mais pesada, para uma pessoa que está cada vez mais cansada emocionalmente. E a tristeza afasta as pessoas, é um facto. Mas ainda assim eu assumo a minha grande tristeza perante o que a minha vida me trouxe. Foi o acaso. A natureza não escolhe a quem entrega as doenças.
Tenho que ter força para lutar por mim, e isso implica fazer o máximo de desporto que consigo, porque a minha coluna lombar precisa de mobilidade, força e elasticidade. Tenho que andar a pé, de bicicleta, nadar ou fazer surf, mas a minha força anímica já está abaixo da reserva, porque no resto do dia estou prisioneiro do meu corpo deitado na cama já sem grande capacidade de sonhar. E quando já não sonhamos, murchamos. Cada doença tem as suas particularidades, mas se conhecerem alguém com uma doença crónica invisivelmente cruel, lembrem-se que só o amor, e um amor consistente, nos pode salvar. Amor e consistência. E ajudar alguém, de verdade, faz-nos um bem imenso.
É isto. Sou eu, assim, outrora forte, agora fraco e muito vulnerável, mas ainda na luta graças ao amor das pessoas que me seguram. Sei bem que a minha frontalidade e transparência vão muitas vezes ser usadas contra mim, mas faz-me bem ser coerente, humilde, e sempre na luta pela bondade que existe em cada um de nós, porque somos mais felizes se a alimentarmos, e, no sentido contrário, querer parecer ser o que não se é será algo que irá sempre destruir-nos por dentro, pelos conflitos interiores.
Falem. Sintam. Ouçam. Estejam ao lado. Aproximem-se das tristezas e serão mais felizes. Se tiverem força, ajudem os mais fracos. E se me quiserem dar um sorriso de que tanto preciso “Olhem para o Mundo com o Coração” neste Natal, e assim ajudam dez ONG, que lutam pela saúde e educação onde ela é mais necessária, a proporcionar milhões de sorrisos.
Eu não estou bem, mas estou seguro, e ainda com vontade de lutar por um mundo melhor onde a bondade, a empatia, e a compaixão sejam as forças que nos ligam a esta coisa bonita a que chamamos Humanidade.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras