Romeu e Julieta vivem um história de amor e lealdade — mas há uma rede que os separa
Julieta é a única arara azul e amarela que vive em liberdade. Romeu é uma das aves do zoo do Rio de Janeiro. A fêmea visita o macho todos os dias e estão juntos há 20 anos.
Numa tarde destes últimos dias, uma arara azul e amarela apaixonada, agarrou numa mão cheia de cenouras e pedaços de bananas e levantou voo. Voou para o topo do viveiro do jardim zoológico do Rio de Janeiro e agarrou-se à rede. Do outro lado da cerca, estava o seu amor — a única arara selvagem numa cidade que não vê uma em liberdade há dois séculos.
A fêmea acenou-lhe. E o macho veio ter com ela. Em lados opostos da rede, esfregaram os bicos. Ela passou-lhe a comida que trazia. Depois agarraram-se, apertaram as garras e não se largaram.
Segundo os tratadores, a arara selvagem voa para o zoológico do Rio de Janeiro todos os dias há mais de duas décadas. No espaço, dezenas de aves da mesma espécie são mantidas em cativeiro — incluindo o companheiro desta arara.
No reino animal, as araras azuis e amarelas estão entre as mais fiéis. Podem viver até aos 50 anos, mas, quando uma encontra um parceiro, é para a vida toda. Normalmente, o casal passa os dias e as noites juntos, mordiscam-se, acariciam-se e até se beijam. Partilham alimentos e, se um deles morre, a angústia do que sobrevive é abismal. Poucos voltam a encontrar um novo companheiro.
Mas mesmo para um animal assim, asseguram os tratadores e biólogos, esta história de amor no Rio de Janeiro é extraordinária.
Como enjaular a arara selvagem seria uma violação da legislação brasileira e libertar a outra ave uma infracção à política e aos padrões éticos do zoológico, o casal só vive e ama em lados separados da rede, situação que os impossibilita de consumar a relação.
Romeu e Julieta, como lhes chamam os tratadores, têm um amor impossível. "Trabalho no jardim zoológico há 28 anos e nunca vi nada parecido. Não tem explicação", assegura Anderson Mendes Augusto.
Há muito que esta história encanta a cidade, deslumbra os visitantes, inspirou o poema de um dos mais célebres poetas brasileiros — e deu origem a uma série de interpretações. Alguns vêem nesta relação uma lição de fidelidade e companheirismo. Outros destacam os temas contemporâneos da conservação e do ambientalismo. E há até quem encontre nas araras uma alegoria para o próprio Rio de Janeiro, cidade esculpida numa floresta exuberante que agora se debate com a perda da própria natureza selvagem.
No entanto, no aviário, a relação parece mais simples: são apenas dois pássaros apaixonados.
Quando chegou à hora do zoo fechar, o casal ainda estava no topo da vedação, agarrados um ao outro. A única pessoa que ficou no recinto foi o tratador Daniel Miranda. Depois, chegou a altura de o tratador também ir para casa. Assim, que terminou as últimas tarefas, atravessou o portão e deixou o viveiro vazio para todos os visitantes — excepto para um.
Uma espécie que desapareceu
Ninguém sabe dizer de onde veio a Julieta e não se sabe para onde é que a ave vai à noite. Mesmo a informação biográfica mais básica, como a idade e onde nasceu continua a ser desconhecida para os tratadores. E também nunca foi feito um estudo para descobrir.
O registo histórico da icónica arara-canindé no Rio de Janeiro também é praticamente inexistente, mas não deixa de ser uma figura omnipresente na cidade. Os vendedores comercializam quinquilharias de arara para turistas e os pintores desenham-nas em paisagens tropicais e verdejantes. A par disto, as araras azuis foram as personagens principais do filme de animação Rio, de 2011.
Contudo, não existe um único registo de araras selvagens azuis e amarelas na cidade há mais de 200 anos. Os ornitólogos não têm dúvidas de que as aves já habitaram a região, mas o crescimento da cidade destruiu o habitat desta espécie e gerou uma procura para a capturar e vender. Cobiçadas pela beleza e carisma, estas araras eram vendidas como animal de companhia para a elite colonial ou eram usadas na confecção de roupas.
O último registo conhecido de uma arara é sobre a sua morte. Segundo uma investigação académica posterior, o naturalista austríaco Johann Natterer foi enviado para o Brasil a pedido do imperador da Áustria para documentar a vida selvagem do país enquanto a filha se preparava para se casar com o futuro imperador do Brasil. "Matei [esta arara], que muito nos deve interessar, em Março de 1818 no Rio de Janeiro", escreveu Johann.
A partir daí, afirma Marcos Raposo, ornitólogo da Universidade Federal do Rio, estas aves "desapareceram de vez”, pelo menos, até há duas décadas, quando uma arara azul e amarela apareceu no zoológico da cidade. Voltou no dia seguinte. E no outro.
Era Julieta.
Amor à primeira vista
Tudo o que os especialistas podem fazer é especular. Talvez a ave tivesse fugido do cativeiro e, ao sobrevoar a cidade, tivesse sido atraída para o parque do jardim zoológico, que está rodeado pelas palmeiras que as araras escolhem para nidificar. A partir daí, é provável que Julieta tenha ouvido outros pássaros se tenha aproximado para investigar.
"E foi assim", recorda Anderson, que na altura era biólogo assistente no zoo.
"Amor à primeira vista", acrescenta o tratador Ricardo Cerqueira.
Mas já passou tanto tempo e foram tantos os tratadores que entraram e saíram do zoológico que é difícil adivinhar o que é verdade e o que é lenda. Há uma história que diz que Julieta uma vez pôs ovos não fertilizados perto do recinto. Outra relata que a arara foi, aparentemente, inspeccionada pelos tratadores do zoo que não encontraram marcas ou anéis que indicassem de onde vinha.
Além disto, são muitas as pessoas que afirmam que Julieta voa todas as noites para a vasta floresta urbana da Tijuca, atravessando quatro quilómetros da densa cidade. Considerada a maior floresta urbana do mundo, o Parque Nacional da Tijuca estende-se como um cobertor verde por 40 quilómetros quadrados, espaço mais do que suficiente para acomodar a ave. No entanto, é praticamente desprovido de vida selvagem e, se Julieta alguma vez escolhesse viver na floresta, ficaria lá sozinha. Os funcionários do Parque duvidam que tenha escolhido a Tijuca.
"Nada está confirmado", explica Leonardo Pinto, tratador que trabalha no zoo há 15 anos. "Cada geração tem as suas histórias sobre a Julieta", completa.
O único ponto que não deixa dúvidas é a fidelidade da ave. Uma vez, durante umas obras de renovação do zoo, os tratadores tiveram de mudar as araras para um viveiro diferente e ficaram preocupados com o que poderia acontecer a Julieta. Será que a ave seria capaz de encontrar Romeu? Mas poucas horas depois de terem levado as araras em cativeiro para o novo espaço, Julieta estava lá.
Só em Março de 2012, mais de uma década depois de ter aparecido pela primeira vez é que a história ganhou maior visibilidade. Nessa altura, a jornalista Mônica Puga estava fazer um trabalho no jardim zoológico sobre os animais que enfrentavam uma onda de calor, quando ouviu uma história bem mais interessante. "Fiquei arrepiada", recorda.
No dia seguinte, quando a reportagem sobre Julieta já tinha ido para o ar na Band, os visitantes do zoo amontoaram-se, não para ver os animais dentro das jaulas, mas para ver o pássaro do lado de fora de uma delas. Depois vieram outras reportagens sobre Julieta, e, explica Mônica, "a lenda cresceu".
O poeta brasileiro Affonso Romano de Sant'Anna ficou comovido com a história. Ao ver as fotos das araras chorou e escreveu:
Liberta-me
da minha liberdade
diz a arara-canindé
ao seu amado
aprisionado
na gaiola do zoológico.
Aprisiona-me contigo
porque enclausurada
ao teu lado
por fim
serei livre
Escolher entre a segurança e o amor
O zoo fica numa das zonas mais urbanas da cidade, uma ilha verde num mar cinzento cheio de potenciais ameaças à cobiçada vida selvagem. As araras continuam a ser uma espécie lucrativa para os traficantes que vendem espécies exóticas nos mercados clandestinos por toda a cidade. Ser capturada é um risco que Julieta corre diariamente.
Ainda assim, continua a regressar todos os dias, incluindo neste. Aterrou em cima do aviário. Romeu olhou para cima, saltou do seu poleiro para um ramo de madeira mais abaixo. "Lá vai ele", afirma Daniel, um dos tratadores, ao mesmo tempo que vê a arara voar para cima.
Vinte anos juntos. Vinte anos separados. Será a história deles um romance? Ou uma tragédia?
As pessoas que visitam o viveiro pensam que sabem a resposta. "É lindo. Ela tem todo aquele espaço para ser livre, mas regressa aqui, à comunidade, apesar das barreiras", afirma Ivo Martins, 36 anos.
Douglas Pereira, 42 anos, e Jaovana Santos, 48, entraram mais tarde no recinto. O casal está junto há 23 anos — tanto tempo quanto Julieta e Romeu. "É uma vitória. Ela mostra-nos como amar, como ser monógamo, como estar mais próximo da família", destaca Douglas.
Para o tratador Leonardo Pinto, as visitas de Julieta despertam outra emoção: a perseverança. Na vida, há muita incerteza, os empregos vêm e vão, os filhos crescem, as amizades formam-se e desaparecem. Mas Julieta não. Ela está sempre a voltar. "Posso contar com a visita dela amanhã. Nem sempre temos isso na vida. Quando ela está aqui, sei que tudo está no seu devido lugar."
Lá em cima, Romeu agarrou-se ao topo do aviário. Solta um ruído. Olhou para Julieta. Foi ter com ela. Está cada vez mais perto, mas mal a consegue alcançar.
Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post