Em prova: Moscatel Roxo, ressurreição de uma casta nobre
No início do século havia quatro hectares de vinha de Moscatel Roxo na Península de Setúbal, hoje temos 56. Aos poucos, o país dá valor às castas que injustamente se apelidam de minoritárias.
Quando, no final dos anos 90, os críticos e os enófilos começaram a descobrir a riqueza de uns poucos moscatéis roxos antigos – que só existiam nalgumas casas históricas de Azeitão –, apanharam um valente susto: a área de vinha da casta na Península de Setúbal rondava os quatro hectares, pelo que, tecnicamente, estava à beira da extinção.
E porquê? Porque, como é uma variedade muito precoce face às restantes castas na região, os gulosos dos pássaros, que andam no ar sempre à espreita de qualquer fruta doce no Verão, mas já enjoados dos figos, atiravam-se como doidos aos cachos de moscatel roxo, de tal forma que, diziam os antigos, quando se entrava nas vinhas para vindimar – em Setembro –, metade das uvas já tinha ido à vida. E, claro, como o vinho é mais negócio do que paixão, os agricultores arrancaram as vinhas, substituindo-as por Moscatel de Setúbal ou outras castas.
Portugal é um país deveras curioso em matéria de conservação da biodiversidade. Fazemos da mesa uma espécie de altar e gostamos de exibir orgulho por tudo aquilo que é nosso, mas, vai-se a ver, na prática, ligamos pouco à preservação dos nossos recursos naturais. Importante mesmo é acompanharmos os catálogos de descontos das cadeias de distribuição – aquelas que determinam o que devemos comer.
Ainda por estes dias, no Porto, umas 30 almas juntaram-se à volta de um queijo de cabra da raça serrana jarmelista. Foi só elogios ao queijo. Mas a parte triste surgiu quando João Madanelo, zootécnico e especialista no universo dos ovinos e caprinos da Serra da Estrela, explicou à assistência que, da raça em causa, existirão 300 exemplares. Ou seja, está à beira da extinção.
E agora, como se pode evitar a tragédia para continuarmos a ter queijo de cabra de grande qualidade? Para começar, por via da compra dos poucos exemplares que um produtor ainda faz questão de meter no mercado e a preços acima da média. Depois, tentar valorizar o leite destes animais em novos formatos de queijo. Ou seja, puxar pela imaginação, que foi o que fez Domingos Soares Franco para recuperar a casta moscatel roxo.
Já sabemos que o enólogo da José Maria da Fonseca, agora a gozar a reforma, foi sempre um homem irrequieto na adega, inventando por tudo e por nada. E, entre muitas criações, um dia lembrou-se de fazer um vinho rosé da casta moscatel roxo, coisa que nunca se tinha visto. Nem houve tempo para estranhar: o vinho pegou de tal forma que, nos eventos do festival Peixe em Lisboa, passou a ser uma estrela pela sua capacidade de ligação com pratos à base de peixe, fosse ele cru, grelhado ou temperado com especiarias.
Até aqui, o moscatel roxo era apenas usado para vinhos fortificados, mas o sucesso deste rosé foi o principal responsável pela recuperação da casta, de tal maneira que, hoje, existem na região de Setúbal 56 hectares em produção. Esse moscatel rosé e, claro, os prémios internacionais que, entretanto, foram adquirindo moscatéis roxos de casas antigas da região, com destaque para a Bacalhôa e a Venâncio da Costa Lima.
Hoje, é até emocionante sentir que a casta moscatel roxo dá para diferentes perfis de vinhos. Às vezes basta uma ideia fora da caixa para que tudo mude – e para melhor. Uma ideia e novas práticas culturais para driblar os pássaros que nunca perderam a gula.
E o melhor é...
Por vezes nem ligamos à riqueza e à diversidade dos nossos vinhos doces. Além de termos o vinho do Porto, o vinho Madeira e o vinho de Carcavelos, quando chegamos à Península de Setúbal temos dois vinhos generosos de perfil diferente: o Moscatel de Setúbal e o Moscatel Roxo. E, bem à portuguesa, há quem nos pergunte, “Qual é o melhor?” Isto do melhor, como se sabe, não existe. E, na verdade, por mais anos de prova acumulados, não conseguimos tomar partido por um dos vinhos.
Umas vezes achamos que a acidez do Moscatel de Setúbal é um factor de introdução de complexidade no vinho; outras, entendemos que os aromas de frutos secos ou mais especiados do roxo são deslumbrantes. Em verdade, nada disso é um problema. Se um dia morrermos com essa dúvida, não será por isso que perderemos o direito ao céu.
Este artigo foi publicado no n.º 6 da revista Solo.